(Continuação daqui)
54. Biscates
No passado fim-de-semana realizou-se em Vila Nova de Gaia o XVI Encontro do Conselho Superior da Magistratura (CSM), que teve a presença do presidente da República. Alguns dos temas discutidos, como a independência do poder judicial em relação ao poder político, discutiram-se na democrática Inglaterra, embora com a colaboração de autores franceses (como Montesquieu), há cerca de três séculos. Porém, é caso para dizer: "Mais vale tarde do que nunca".
Também se discutiu o código de conduta dos juízes e, em especial, as situações de conflito de interesses. É que os juízes portugueses, reunidos em Gaia, responsáveis, ao mais alto nível, por julgar a conduta dos cidadãos portugueses, ainda não foram capazes de adoptar um código de conduta para eles próprios que satisfaça critérios minimamente aceitáveis. Refiro-me aos critérios que são recomendados pelo GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção) do Conselho da Europa, de que Portugal faz parte, e que têm em vista evitar a corrupção entre os juízes (cf. aqui).
É uma história de conflito de interesses de juízes que eu gostaria agora de contar.
Nas eleições de 2002 para a presidência da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), o candidato Gilberto Madaíl, anunciava que, se ganhasse, a sua equipa para o Conselho de Justiça (CJ) da FPF seria constituída inteiramente por juízes, e divulgava à comunicação social os seus nomes. Era uma maneira de procurar aumentar a confiança na justiça desportiva no âmbito do futebol.
Juízes, verdadeiros juízes dos tribunais, a servirem no futebol?
Sim, era isso que Madaíl prometia, e cumpriu. Havia juízes dispostos a fazer uns biscates na FPF.
O conflito de interesses estava mesmo à vista. Se um dia, algum destes juízes, no seu respectivo tribunal, tivesse de julgar a FPF, algum dos seus directores, ou o presidente Madaíl, como é que iria decidir - a favor dos patrões?
Portugal é um país de tudo e, como tal, há juízes para tudo. E esta experiência tinha todos os ingredientes para acabar mal, e foi isso que aconteceu.
O conflito de interesse ia além dos biscates e do dinheiro. O que dizer, se algum dia, um caso de justiça desportiva se tornasse também um caso de justiça criminal - prevalecia o julgamento dos juízes da FPF ou o julgamento dos juízes do tribunal comum? O cúmulo do azar seria o caso de um juiz ser ao mesmo tempo juiz da FPF e juiz do tribunal comum onde o caso fosse julgado.
E isso aconteceu?
Sim, por mais incrível que pareça, aconteceu tudo isto. Aconteceu com o caso Apito Dourado (cf. aqui).
A certa altura, juízes julgavam o caso Apito Dourado na FPF enquanto os seus colegas juízes julgavam o mesmo caso nos tribunais comuns. E houve mesmo um juiz que teve um azar extraordinário. Enquanto ele julgava o caso Apito Dourado no âmbito da Federação, o recurso da sentença dos tribunais comuns foi parar ao Tribunal da Relação onde ele também era juiz.
O caso visava directamente o F.C. Porto. A certa altura os seus rivais, a começar pelo Benfica, começaram a pressionar a FPF para que o seu Conselho de Justiça decidisse sobre o caso Apito Dourado. Mas quem compreendesse a situação, facilmente chegaria à conclusão que o caso tinha sido metido na gaveta pelos juízes da Federação.
Por uma razão muito simples. Os juízes da Federação, que também eram juízes dos tribunais portugueses, estariam a ser ameaçados de sanções pelo Conselho Superior da Magistratura - o órgão de governação dos juízes - se decidissem na Federação um caso que estava entregue aos tribunais da nação. O conflito de interesses era gritante, era como um carro a ser conduzido de frente em direcção a um comboio.
Em breve, os juízes da Federação arranjaram um álibi para se demitirem em bloco (cf. aqui). E foi assim, discretamente e com o rabo entre as pernas, que terminou a situação de conflito de interesses dos juízes que, por uns biscates, se tinham vendido à Federação Portuguesa de Futebol.
Fica apenas um mistério. Quem terá sido esse juiz a quem tudo correu mal - no sentido em que, se mais conflitos de interesses houvesse, ele estaria envolvido em todos eles -, o juiz que se vendeu por um biscate, que fez parte dos juízes da FPF, e que, para cúmulo do azar, o recurso do processo Apito Dourado foi parar ao Tribunal da Relação onde ele próprio era juiz?
Não vou revelar tudo, mas posso dizer que o Tribunal da Relação era o do Porto (cf. aqui).
Quanto ao resto do enigma, veja aqui (parágrafo 25º das alegações da defesa), e depois aqui e também aqui.
(Continua acolá)
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