19 agosto 2022

decepcionado

Está no Top-10 dos posts mais partilhados deste blogue desde a sua fundação há 17 anos atrás. Foi escrito em Janeiro do ano passado em plena campanha para as presidenciais e tem o título "Por que vou votar no André Ventura (I)" (cf. aqui)

A explicação vinha logo nas primeiras linhas - porque ele se propunha realizar "uma profundíssima reforma da justiça", que é também a minha prioridade política para Portugal.

Portugal e a Espanha foram os países (católicos) que lideraram a oposição à democracia liberal nascente nos países tocados pelo protestantismo a partir do século XVI. O principal instrumento dessa oposição foi a justiça inquisitorial, que ficou na tradição dos dois países ibéricos e que é, naturalmente, uma justiça profundamente anti-democrática.

Não se passa de uma tradição inquisitorial para uma tradição democrática em meia dúzia de anos. Mas, com quase 50 anos de democracia, e uma experiência democrática falhada (1820-1926)  em larga medida por causa da justiça, era tempo de  Portugal adaptar o seu sistema de justiça às exigências de uma democracia.

A proclamação do André Ventura representou para mim uma esperança que o tempo tinha chegado para uma justiça democrática no país, já que dos partidos do sistema não se podia esperar mais nada.

É claro que eu não esperava que o André Ventura, na altura deputado único do CHEGA, fizesse essa reforma sozinho. E, assim, eu próprio me empenhei, na medida das minhas possibilidades, para que o CHEGA pudesse eleger um número significativo de deputados nas eleições de Janeiro passado, e isso veio a acontecer. O CHEGA tornou-se o terceiro maior grupo parlamentar na Assembleia da República com 12 deputados eleitos. 

Que medidas para a justiça esperava eu?

Várias, todas elas estruturantes de um sistema de justiça democrático com um grande ênfase na necessidade de assegurar um dos princípios fundamentais da democracia - o da separação entre os poderes político e judicial - e tornar viável a concretização prática dos dois atributos mais importantes de uma justiça democrática - a independência e a imparcialidade.

Por exemplo,

-Uma lei que impeça os juízes e os procuradores do Ministério Público de desempenharem cargos políticos ou, fazendo-o, que a lei os impeça de voltar à carreira judicial; 

-Uma lei que retire ao governo o privilégio de fixar os vencimentos dos juízes;

-Uma lei que ponha o Ministério Público onde ele verdadeiramente pertence numa democracia, que é sob a tutela do ministro da Justiça e respondendo perante este (e este perante o povo).

-Uma lei que acabe com as figuras inquisitoriais do juiz de instrução  - que, ao contrário do que o nome sugere, não é juiz nenhum, mas um acusador - e dos tribunais de instrução criminal, que são a recriação moderna dos antigos tribunais da Inquisição;

-Sendo a democracia um regime de regras cujo respeito, em última instância, é imposto pelos juízes, uma lei que obrigue os juízes a dar o exemplo, respeitando as regras da jurisprudência e evitando decisões arbitrárias dos tribunais.

-Uma lei que responsabilize os magistrados, ao menos disciplinarmente, pelas suas más decisões, penalizando os juízes quando as suas decisões são revertidas pelos tribunais superiores, e os procuradores do MP quando acusam pessoas inocentes;

-Uma lei que impeça os advogados - que são parte do poder judicial -, de exercer simultaneamente funções políticas, inviabilizando assim o maior canal de promiscuidade entre o poder judicial e o poder político;

-Uma lei que restrinja severamente a competência jurisdicional da Ordem dos Advogados, limitando a justiça privativa da corporação, e fazendo os advogados responder pelos crimes cometidos no exercício da sua profissão (v.g., assédio, chantagem, extorsão, associação criminosa); 

-Uma lei que acabe com o estatuto de opacidade das sociedades de advogados, impedindo que elas se tornem centros privilegiados de fuga ao fisco, lavagem de dinheiro e criminalidade legalizada.

-Uma lei que reforme ou extinga o Tribunal Constitucional que, nascido do Conselho da Revolução, conseguiu, com os anos, usurpar as funções do Supremo Tribunal de Justiça e tornar-se hoje no tribunal supremo do país - um tribunal supremo cujos "juízes" não são, na sua maioria, juízes nenhuns, mas meros mandatários políticos dos dois maiores partidos do sistema, e que chegaram a esse tribunal supremo sem nunca terem feito um único julgamento na vida. 

O grupo parlamentar do CHEGA está em funções há seis meses. Na área da justiça, a única coisa que fez foi apresentar propostas que aumentam as penas de prisão para certos crimes. São propostas avulsas que nada representam em termos de "uma profundíssima reforma da justiça" e que não me entusiasmam particularmente nem são prioritárias num país, como Portugal,  que é considerado um dos países mais pacíficos do mundo (cf. aqui).

Assim sendo, qual o meu estado de espírito ao final destes seis meses em termos de propostas do CHEGA que representem passos significativos na direcção de "uma profundíssima reforma da justiça"?

Estou bastante decepcionado. Mas talvez seja necessário dar mais tempo.

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