14 abril 2022

Ou talvez não (6)

 (Continuação daqui)



6. O momento

O processo que acabei de descrever, e que tem como figura central a ex-ministra da Justiça - aliás, ex-procuradora-geral adjunta do Ministério Público, aliás, ex-juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça -, Francisca van Dunem, é um processo corrupto desde o princípio até ao fim.

Relembro os seus principais momentos.

Novembro de 2015. Francisca van Dunem, procuradora-geral adjunta, a mais alta categoria do Ministério Público, na altura a desempenhar altas funções no sistema de justiça (Procuradora-Geral Distrital de Lisboa, isto é, chefe do Ministério Público para a região de Lisboa), é nomeada ministra da Justiça do Governo de António Costa.  

Uma alta magistrada da justiça fica ao serviço do poder político e sob a autoridade do chefe do poder executivo. É a corrupção de um dos mais sagrados princípios da democracia - o da independência do poder judicial em relação ao poder político. (Este princípio, formulado por Montesquieu no seu célebre L'Ésprit des Lois, tem em vista impedir que o poder político utilize a justiça para perseguir os seus adversários políticos)

Pode perguntar-se por que é que o Ministério Público - o combatente oficial da corrupção no país -,  sempre tão cioso da sua autonomia e da sua independência em relação ao poder político, não protestou por ver uma das suas mais altas magistradas submetida às ordens do Governo, do partido do Governo e do chefe do Governo, e, pelo contrário, até autorizou que ela fosse desempenhar funções políticas.

A resposta será conhecida no Verão de 2019 (cf. em baixo), mas para já fica uma explicação dada pelo juiz Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Disse ele, a propósito dos magistrados do MP do seu próprio país, que herdaram a tradição do nosso: "Os combatentes da corrupção gostam muito de dinheiro" (cf. aqui)

Março de 2016. Se ter uma alta magistrada do Ministério Público ao serviço do poder político é grave corrupção da justiça, ter uma juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça a desempenhar esse papel é o cúmulo da subjugação do poder judicial ao poder político.

Porém, foi isso que aconteceu nesta data quando o Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão de cúpula dos juízes, promoveu Francisca van Dunem a juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Acresce que a promovida estava na altura a exercer funções políticas de ministra e não podia assumir as funções de juíza do Supremo para as quais foi promovida (na realidade, nunca viria a assumi-las).

Maior prostituição da justiça é difícil de imaginar - uma juíza do Supremo Tribunal de Justiça às ordens do poder político -, uma oferta do próprio órgão de cúpula dos juízes ao poder executivo.

Quantas pessoas terão sido condenadas (e quantas, que deveriam ter sido condenadas, deixaram de o ser) por ordem do poder político, utilizando a juíza-conselheira van Dunem (e outros magistrados que serviam na altura no Governo, cf. aqui) como correia de transmissão entre o poder político e o poder judicial?

Eu desconfio seriamente de um caso em que a condenação foi feita por encomenda (cf. aqui). Na realidade, o jornalista que informou o réu, por telefone, do teor da sentença do Tribunal da Relação do Porto, logo acrescentou: "Olhe que no seu caso a decisão foi política". (O juiz que se esconde no acórdão, assinando com um gatafunho, e que foi decisivo para desempatar a decisão, é o juiz Francisco Marcolino, chefe da secção do TRP à qual o processo foi "distribuído", e ex-candidato do PS à Câmara de Bragança, cf. aqui). Existe agora um processo contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que poderá em breve vir a ser considerado um caso paradigmático de violação dos direitos humanos (ou de corrupção da justiça) (cf. aqui).

Noutro caso, que é público, há lugar a forte desconfiança também. Refiro-me à Operação Marquês envolvendo pessoas ligadas ao PS.  Desde que António Costa é primeiro-ministro e enquanto a juíza-conselheira Francisca van Dunem foi sua ministra da Justiça, a Operação Marquês nunca avançou. Na realidade regrediu, porque entretanto foi nomeado um novo juiz de instrução que tirou 80% dos crimes à acusação que pendia sobre José Sócrates e outros arguidos no processo. À data de hoje, quem está mais próximo de ser julgado não é o ex-primeiro-ministro do PS, mas o juiz que o acusou (cf. aqui).

Verão de 2019. O Conselho de Ministros aprova, sob proposta da ministra van Dunem, um novo estatuto para os magistrados que, no topo da carreira (juiz conselheiro para os juízes, procurador geral adjunto para o Ministério Público), lhes dá um aumento extraordinário e imediato de vencimento de 700 euros por mês e os põe a ganhar mais do que o próprio primeiro-ministro. As benesses aprovadas valem para os juízes (cf. aqui) e também para os procuradores do Ministério Público (cf. aqui).

É o momento em que o cliente (poder executivo) paga à prostituta (justiça) pelos serviços prestados. 

É também o momento em que a ministra van Dunem retribui aos seus colegas juízes a promoção de 2016 e ao Ministério Público a alavancagem que lhe permitiu chegar a ministra. Imaginar a ministra van Dunem a propor e a votar em Conselho de Ministros uma lei que a beneficia a si própria (na qualidade de juíza conselheira) só acrescenta ao desalento.

Março de 2022. A poucos dias de cessar funções governativas, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça aceitam o pedido de aposentação de Francisca van Dunem, que se reforma como juíza conselheira e uma pensão de reforma correspondente a essa categoria e vencimento, sem nunca ter exercido tais funções. É o momento em que os juízes fazem o agradecimento derradeiro a uma ministra e colega que foi tão generosa para com eles e para consigo própria (cf. aqui).

Abril de 2022. A Caixa Geral de Aposentações publica em Diário da República o valor da pensão de reforma da juíza-conselheira-fantasma, Francisca van Dunem : 6 750 por mês (cf. aqui), num país onde o português médio ganha, a trabalhar, um quinto desse valor. 

Resta acrescentar que Francisca van Dunem foi ministra de dois governos socialistas, e que o socialismo visa realizar a igualdade material entre todos os portugueses. 

(Continua)

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