05 maio 2021

Marçanos da judicatura (XVI)

 (Continuação daqui)


XVI. Uma petição de justiça


Começavam a acumular-se os sinais de que o Tribunal Constitucional pretendia dar um tratamento diferente ao cidadão A daquele que guardava para os cabos da GNR, embora os cidadão A e os guardas da GNR estivessem exactamente na mesma situação - tinham sido condenados inovadoramente na Relação em penas de multa e pretendiam recorrer para o Supremo, ao abrigo do artº 32º, nº 1, da Constituição.

O acórdão 646/2020 negava ao cidadão A esse direito, que o acórdão 31/2020 reconhecia aos guardas da GNR. E, agora, o despacho da "juíza" relatora negava-lhe o recurso para o plenário do Tribunal Constitucional. 

Este despacho foi gratuito, a juíza Rangel de Mesquita não facturou custas judiciais. Mas o acórdão 646/2020, onde o Tribunal Constitucional negava ao cidadão A o direito ao recurso não foi. Já mesmo no final do acórdão, a "juíza" relatora não se esqueceu de apresentar a factura:

"Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, nos termos do disposto nos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, e tendo em conta a prática deste Tribunal em casos semelhantes". (cf. aqui)

Como cada unidade de conta vale  102 euros (cf. aqui), este acórdão custou ao cidadão A 2040 euros. Quer dizer, não só o Tribunal Constitucional lhe sonegou um direito constitucional, como ainda o fez pagar por isso. Começava a ganhar realidade aquela tese de Santo Agostinho,  segundo a qual um Estado que não se reja pela justiça acaba por se converter num grande bando de ladrões.

Por isso, quando foi recebido o despacho da "juíza"  Rangel  a indeferir o recurso do cidadão A para o plenário, o advogado do cidadão A submeteu à sua consideração a submissão de um último recurso ao Tribunal Constitucional, e cujo texto prontamente lhe enviou.

Havia duas considerações. Por um lado, o cidadão A já havia apresentado queixa contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por virtude da decisão condenatória no Tribunal da Relação. Apesar da queixa ter sido aceite, o processo só tem seguimento no TEDH depois de fechado nos tribunais nacionais e aí esgotados todos os recursos. À luz desta consideração, havia conveniência em fazer o último recurso para o Tribunal Constitucional.

A segunda consideração era o risco de o recurso ser indeferido e o Tribunal Constitucional facturar ao cidadão A arbitrariamente mais umas tantas unidades de conta, ascendendo aos milhares de euros. O risco era tanto maior quanto é certo que, por esta altura,  o cidadão A estava já convencido que o mais alto Tribunal do país estava de má-fé em relação à sua pessoa.

Depois de ler o texto que lhe foi enviado pelo advogado, o cidadão A decidiu correr o risco e deu o OK para que o recurso seguisse para o Tribunal Constitucional. No e-mail que enviou ao seu advogado escreveu: "OK (...) parece-me (...) um acto de justiça"

O recurso era uma verdadeira petição de justiça. Assente na figura jurídica da suspensão da instância, que tem acolhimento na legislação portuguesa, aquilo que o cidadão A pedia ao Tribunal Constitucional era que este Tribunal o tratasse como aos guardas da GNR - o princípio mais elementar da justiça relativa e da justiça democrática, que é o de a leis e os tribunais tratarem todos os cidadãos de forma igual.

O recurso pedia que a decisão do acórdão 646/2020 - que negava ao cidadão A o direito ao recurso - fosse suspensa até que o Tribunal Constitucional apreciasse em plenário o acórdão 31/2020 - que reconhecia aos guardas da GNR o direito ao recurso -, e que, depois, lhe aplicasse a  ele, cidadão A, a mesma decisão que o plenário viesse a aplicar as guardas da GNR.

Por duas vezes, o cidadão A no passado recente tinha estado certo que o Tribunal Constitucional satisfaria as suas pretensões, porque eram pretensões justas, e por duas vezes saiu decepcionado. Primeiro porque o Tribunal lhe negou um direito constitucional depois de o reconhecer aos guardas da GNR; em seguida, porque o Tribunal Constitucional lhe negou o acesso ao plenário com uma argumentação que não lembraria ao diabo.

Desta vez, não podia falhar. Estava em jogo um princípio elementar de justiça - "Tratem-me como aos guardas da GNR uma vez que estou na mesma situação". Era certo que desta vez o Tribunal Constitucional iria decidir a seu favor. E o recurso lá seguiu, poucos dias antes do Natal.

(Continua)

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