(Continuação daqui)
VII. Uma luz no meio da escuridão
O Professor Costa Andrade tem a merecida reputação de ser um penalista moderno e democrático, segundo o qual o direito penal tem de ser iluminado pelos direitos humanos. Esta é uma visão rara em Portugal que, tendo uma tradição penal inquisitorial e, portanto, anti-democrática, vê com naturalidade o direito penal, incluindo o direito do processo penal - e sobretudo este - a espezinhar os direitos humanos.
"Não se combate crime cometendo crime", não se cansa de proclamar o juiz Gilmar Mendes no Brasil, que herdou de Portugal a tradição inquisitorial e anti-humanista do direito penal. Uma das cruzadas do Professor Costa Andrade, enquanto presidente do Tribunal Constitucional, foi parecida. Podia resumir-se na frase: "Não são válidas as leis penais que violam os direitos humanos" ou "Os direitos humanos estão acima das leis penais".
Assim interpretada, a cruzada do Professor Costa Andrade foi bastante mais ampla do que a do juiz Gilmar Mendes no Brasil porque visou não só impedir que se cometam crimes no combate ao crime, mas também - e principalmente - impedir que sejam criminalizadas pessoas inocentes, que é algo em que a nossa tradição penal é, infelizmente, especialista.
Foi a Lei 20/2013, que veio dar uma nova redacção ao artº 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal - o código mais inquisitorial da nossa tradição judicial -, que, em breve, entraria em conflito com o direito fundamental ao recurso previsto no artº 32º da Constituição.
O objectivo da Lei era reduzir a carga de trabalho que impende sobre o Supremo Tribunal de Justiça, evitando levar a este Tribunal recursos sobre assuntos de somenos importância. No essencial, a Lei diz que só são recorríveis para o Supremo as condenações envolvendo penas de prisão superiores a 5 anos.
De acordo com a nova Lei, alguém que foi absolvido em primeira instância, mas condenado na Relação em 3 anos de prisão, tinha de ir directamente para a prisão, sem direito a recurso. Da mesma forma, alguém que foi absolvido em primeira instância, mas condenado na Relação a multas e indemnizações no valor de 50 mil euros, tinha de os pagar sem direito a recurso.
A Lei é anterior à tomada de posse do Professor Costa Andrade como presidente do Tribunal Constitucional, que só ocorreu em Julho de 2016. Nos anos que se seguiram à entrada em vigor da nova Lei, os juízes do Tribunal Constitucional andaram a produzir acórdãos uns atrás dos outros, frequentemente contraditórios entre si, sobre a inconstitucionalidade ou não desta Lei, embora se trate de uma Lei que é, obviamente, inconstitucional.
No confronto entre uma Lei ordinária, como a Lei 20/2013, e a Lei constitucional, prevalece a Lei de nível superior, que é a Lei constitucional. Até um estudante do primeiro ano de Direito sabe isto, mas não os "juízes" do Tribunal Constitucional.
O acórdão 595/2018 representou um passo na boa direcção, mas ficou a meio caminho. Declarou a Lei inconstitucional no caso de envolver penas de prisão efectiva, mas considerou-a constitucional no caso das penas envolvidas serem de multa ou outras não privativas de liberdade.
Assim, quem fosse condenado inovadoramente na Relação numa pena de prisão efectiva de 3 anos já podia recorrer para o Supremo. Mas quem fosse condenado inovadoramente na Relação numa pena de multa mais indemnizações no valor de 50 mil euros, ficava privado do direito ao recurso, e tinha de os pagar.
A decisão foi muito dividida e, nas declarações de voto, só uma voz se fez ouvir no sentido da justiça e essa voz foi a do Professor Costa Andrade. Ele votou favoravelmente o acórdão, mas deixou claro que a justiça só seria completamente realizada quando o Tribunal Constitucional estendesse a declaração de inconstitucionalidade também às penas de multa e outras não privativas da liberdade.
O Professor Costa Andrade chegou a presidente do mais alto Tribunal do país sem nunca ter feito um julgamento. Não o considero um juiz, mas ele é, certamente, aos meus olhos, um respeitável Professor de Direito Penal e um democrata. Enquanto presidiu ao Tribunal Constitucional, em termos da defesa dos direitos humanos, ele foi uma luz no meio da escuridão.
(Continua)
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