02 maio 2021

Marçanos da judicatura (VI)

(Continuação daqui)


VI. Uma bomba


Ao chegar o final do ano, o Professor Costa Andrade tinha em mãos um sério imbróglio para resolver. Provavelmente, era um entre muitos, mas este era bastante sério e envolvia-o a ele, não apenas como presidente, mas também como "juiz" do Tribunal Constitucional.

Na primeira condição, ele presidia a um Tribunal - o mais alto tribunal do país - que mais parecia um casino, em que a mesma questão de direito tanto podia receber uma resposta como a resposta exactamente oposta. Como juiz, ele era um dos subscritores do acórdão 31/2020 de 16 de Janeiro (cf. aqui) que tinha sido radicalmente contraditado pelo acórdão 646/2020 de 16 de Novembro (cf. aqui).

Compreende-se agora por que é que, embora tivesse mais do que tempo para isso, o Professor Costa Andrade nunca tivesse agendado para o Plenário o acórdão 31/2020 como a lei impõe, uma situação que se mantém até hoje, quase ano e meio depois de ele ter transitado em julgado na 2ª Secção do Tribunal. Para o observador externo, é o acórdão 646/2020 que começa a desvendar este mistério.

Quem olhar para o voto de cada um dos sete "juízes" que assinam os dois acórdãos, vai concluir que só dois - Costa Andrade e Mariana Canotilho - são favoráveis à decisão contida no acórdão 31/2020, sendo os outros cinco contra. A julgar por esta amostra - cinco contra dois -, é mais do que certo que o Plenário vai chumbar o acórdão 31/2020 quando ele lá chegar.

Esta conclusão é confirmada por quem analisar as declarações de voto de outros "juízes" em anteriores acórdãos sobre a mesma matéria. Por exemplo, na declaração de voto que profere no acórdão 595/2018 (cf. aqui), resulta claro que o "juiz" Gonçalo de Almeida Ribeiro também votaria contra o acórdão 31/2020. 

Quer dizer, a comunicação social iria agora reportar que o Tribunal Constitucional deu o dito por não dito, que, afinal, os guardas da GNR já não podem recorrer para o Supremo;  que os guardas vão ter mesmo de cumprir a pena que lhes foi imposta pela Relação, isto é, pagarem multas ao Estado e indemnizações ao juiz Neto de Moura. Tudo isto iria reacender a ira dos comandantes das forças de segurança, com a GNR à cabeça, e causar um enorme embaraço ao Governo e à Justiça, e um escândalo na opinião pública.

Havia alguns rumores, aliás, de que, pelo final do ano, o Tribunal Constitucional estava a receber telefonemas de jornalistas a pedirem explicações sobre a contradição entre os acórdãos 31/2020 e 646/2020. E eu não ficaria surpreendido que, no futuro, outros jornalistas telefonem para lá a perguntar quando é que o acórdão 31/2020 sai finalmente da gaveta e é levado ao Plenário, como a lei impõe. É que os jornalistas precisam de notícias e esta é uma bomba que provavelmente arruinará de vez a credibilidade do sistema de justiça.

Quatro militares da GNR, em 2012, multam um juiz que conduzia um carro sem matrícula em Loures. A coisa anda dez anos pelos tribunais, primeiro pelo Tribunal de Loures, depois pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de caminho vai ao Conselho Superior da Magistratura - que é o órgão de governação dos juízes -, mais tarde vai ao Supremo Tribunal de Justiça, que remete o caso para o Tribunal Constitucional. No fim, quem acaba condenado são os militares da GNR, enquanto o juiz prevaricador continua descansado da vida, a escrever acórdãos muito cristãos, agora no Tribunal da Relação do Porto.

O Professor Costa Andrade não queria lá estar para assistir a esta cena. Por esta e, provavelmente, por outras como esta, chegado o mês de Fevereiro deste ano, em que se completavam quatro anos e meio da sua presidência, aproveitou a passagem do testemunho a um "juiz" do outro partido, João Caupers (PS), e bateu com a porta, renunciando também à sua condição de juiz do Tribunal Constitucional, onde tinha ainda mais quatro anos e meio de mandato para cumprir.

Na idade em que está, não se lhe podia exigir mais.

(Continua)

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