10 dezembro 2020

1978


Quando, no outono de 1978, cheguei à Universidade de Ottawa na qualidade de jovem doutorando e assistente universitário, eu tive vários choques. 

Hoje, à distância de mais de quarenta anos, considero-os todos culturais e atribuo-os todos à mesma causa, que é a seguinte. O Canadá era um jovem país, comparado com o meu, que já era velho. Nesse ano de 1978, o Canadá fazia 111 anos de idade (cf. aqui), ao passo que o meu fazia 835. Porém, a democracia no Canadá tinha a idade do país - 111 anos - ao passo que no meu a democracia tinha apenas quatro anos. Era uma menina.

Passados meses notei que eram raríssimos os professores da universidade que iam para a política ocupar lugares no governo. Eu estava habituado no meu país - um hábito que se mantém até hoje - a que a universidade fosse uma espécie de mulher traída que tinha sempre a porta aberta para receber o marido quando ele se cansava das outras. Os universitários iam para a política e vinham dela, numa espécie de "vou ali, já venho" como quem vai ali , num instantinho, fazer uma perninha com uma amante.

Mas esse não foi o choque principal. O choque principal foi o de verificar, depois, que, dos raros universitários que saíam da universidade para a política, quando queriam regressar, eram os seus próprios colegas que se opunham ao seu regresso. 

Em breve, compreendi a razão, que tinha a ver com a tradição democrática do Canadá. A universidade é o lugar onde se procura a verdade, e essa procura da verdade exige independência de espírito e que se oiçam todas as pessoas com igual atenção, qualquer que seja o grupo, a etnia, o sexo, a cor da pele, a nação, a religião, a facção ou o partido político a que elas pertençam. A procura da verdade exige independência e imparcialidade.

Eram a independência e a imparcialidade que os universitários perdiam quando decidiam servir um governo e um partido político. A partir daí, estes homens e mulheres ficavam desqualificados para a vida inteira como universitários. 

Especialmente no campo das ciências sociais, como era o caso, um professor não podia mais defender uma certa teoria ou uma certa tese perante uma audiência de estudantes, sem que os estudantes estivessem a perguntar-se: "O professor está a defender esta tese ou teoria porque é também a tese ou teoria defendida pelo partido a que pertence?".

Passaram 42 anos. O Canadá tem agora 153 anos, e  outros tantos de democracia. Portugal tem agora 877 anos, mas somente 46 de democracia.  

Por isso, foi com espanto, mas também satisfação, que hoje, ao folhear o Público, eu dei com a seguinte notícia na página 19: "Juízes não querem que magistrados na política regressem aos tribunais" (cf. aqui).

Foi um choque tão grande como aquele que tive em Ottawa há 42 anos atrás. 

Sem comentários: