07 novembro 2020

Um juiz à solta (VIII)

 (Continuação daqui)



VIII. A lentidão da justiça

É uma das heranças mais cruéis da nossa tradição jurídica e católica. Numa altura em que a religião se confundia com a política, a Inquisição era a polícia política que perseguia os opositores - então chamados hereges - ao poder instituído, dando a aparência ao povo de que estava a fazer justiça.

A futilidade da maior parte dos processos judiciais instaurados pela Inquisição, frequentemente sobre pessoas reconhecidamente decentes, era tal que, mesmo nos tribunais mais parciais deste mundo - como eram notoriamente os tribunais do santo ofício - dificilmente a Inquisição conseguia obter uma condenação dos arguidos. 

Perante esta realidade - a de que a maior parte dos arguidos nunca seriam condenados em tribunal - a Inquisição prolongava indefinidamente os processos judiciais para que a dúvida sobre os arguidos pairasse indefinidamente no espírito do povo, arruinando-lhes a reputação e frequentemente a vida. Na impossibilidade de a pena estar na condenação, a Inquisição zelava para que a pena estivesse no processo e na sua duração.

Esta tradição da demora na justiça permaneceu até hoje em Portugal. Vale hoje aos cidadãos portugueses que, vivendo numa democracia liberal, e tendo Portugal subscrito em 1978 a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), já tenham quem os proteja dos abusos do seu próprio  Estado e das três corporações que, em conjunto, dominam - frequentemente em benefício próprio -, o sistema de justiça no país: advogados, procuradores do ministério público e juízes.

A demora na justiça é hoje considerada violação de um dos direitos humanos fundamentais previsto no artigo 6º da CEDH (direito a um processo justo ou equitativo, cf. aqui) o qual considera que a justiça tem de ser feita "num prazo razoável"

Não será surpresa para ninguém que esta seja a razão pela qual o Estado português (leia-se: a justiça portuguesa, através dos seus juízes, advogados e procuradores do ministério público) tem sido mais vezes condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). À última contagem, e nos últimos 35 anos, Portugal tinha sido condenado 143 vezes por demoras na justiça, o que dá uma média de quatro condenações por ano só por esta razão (cf. aqui). 

Entre os princípios que guiam a actividade dos juízes, consagrados no seu Código de Conduta, está o princípio da Diligência, previsto, como os outros, no Artº 3º. Mais adiante, o conteúdo deste princípio é especificado no Artº 9º, que vale a pena citar no seu primeiro parágrafo: 

"1. No exercício da sua função, os magistrados judiciais empenham-se no tratamento célere dos processos, procurando que os casos que sejam submetidos à sua apreciação sejam decididos com a máxima qualidade e prontidão" (cf. aqui, ênfases meus).

"Um amigo da humanidade nunca é meu amigo", escreveu Molière em O Mísantropo. Quis ele dizer que as pessoas que se dedicam a amar a humanidade, estão demasiadamente ocupadas nessa grandiosa tarefa de espalhar o amor pelo mundo inteiro para darem atenção à pequena tarefa de amar aqueles que lhes são próximos.

Acontece assim com o juiz Vaz Patto. Na sua vida pública, ele está de tal maneira envolvido no serviço à Igreja Católica e às causas católicas, como as de tirar a eutanásia deste mundo, a prostituição, a droga, o casamento entre homossexuais, o aborto; ele escreve e aparece em tantos órgãos de comunicação social, especialmente rádios, jornais e revistas; ele participa em comícios e em tantas conferências, algumas no estrangeiro; ele serve tantas instituições católicas, como a Comissão Nacional Justiça e Paz, de que é presidente, o Movimento dos Focolares, de cujo órgão de comunicação social é chefe de redação, a própria associação "O Ninho", da qual é presidente da Assembleia Geral que, literalmente, não lhe resta tempo para retribuir aos cidadãos portugueses, com a diligência que é devida, aquilo que eles lhe pagam para fazer - ser juiz de um tribunal superior do país.

Se a demora na realização da justiça é uma das tradições mais cruéis da justiça portuguesa e um dos maiores abusos do Estado sobre os cidadãos, se ela é a razão que mais vezes levou no passado, e está destinada a levar no futuro, à condenação do Estado português (leia-se: justiça portuguesa) pelo TEDH, ninguém, no seu perfeito juízo, acredita que é com juízes como o juiz Vaz Patto que um dia a justiça em Portugal se vai tornar decentemente célere.

Ninguém acredita. Resta-lhe pouco tempo para ser juiz, tão embrenhado que anda na religião e na política.

(Continua) 

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