06 novembro 2020

Um juiz à solta (VI)

 (Continuação daqui)

Pedro Vaz Patto, juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto e chefe da redação do órgão oficial do Movimento dos Focolares



VI. O chefe da redação

Na sua vasta obra teológica, o Papa emérito Bento XVI, ele próprio nascido na pátria do protestantismo, dedicou uma atenção considerável a reavivar uma velha tradição católica. Trata-se da tradição conhecida por "personalismo católico" que vê em cada ser humano uma pessoa, e não meramente um indivíduo, como faz a tradição protestante.

A Constituição americana, que é um documento de forte inspiração protestante, afirma logo na sua primeira linha que "Nós acreditamos que todos os homens são criados iguais..."  e segue por ali fora para criar os fundamentos daquela que viria a tornar-se a nação mais poderosa do mundo.

É uma ironia, porém, que a nação mais poderosa do mundo esteja fundada numa meia-verdade, a saber, a de que todos os homens são criados iguais. A verdade inteira é a de que todos os homens são criados iguais e diferentes - v.g., todos eles têm nariz, e neste aspecto são criados iguais, mas o nariz de cada um é diferente do nariz de todos os outros, e neste outro aspecto são criados diferentes. 

A tradição protestante enfatiza a igualdade, e reduz cada ser humano a um indivíduo, uma expressão que também se aplica aos animais. Pelo contrário, a tradição católica enfatiza a diferença e trata cada ser humano como uma pessoa, um ser único e irrepetível. 

A palavra pessoa tem origem no grego onde significava originalmente personagem de uma peça de teatro. Na linguagem actual, ela mantém um significado aproximado aludindo ao papel que cada ser humano desempenha na vida.

A distinção entre indivíduo e pessoa, enfatizando ora a igualdade ora a diferença, não é meramente académica. Ela é crucial para conferir valor à vida humana. Numa sociedade onde todos são iguais (indivíduos), a vida de cada um não tem valor nenhum. Cada um pode morrer à vontade que não faz falta nenhuma pois ainda cá ficam muitos milhões iguais a ele para que ele não seja nunca lembrado. 

As coisas deixam de ser assim se ele for uma pessoa, um ser humano único e irrepetível, diferente de todos os outros porque, nesse caso, ele é insubstituível - nunca existiu nem nunca existirá outro igual a ele. É a diferença que confere valor à vida humana, não a igualdade.  

A diferença entre dois seres humanos existe nos seus caracteres físicos, mas é sobretudo vincada nas suas respectivas personalidades. É a personalidade, muito mais dos que os caracteres físicos, aquilo que é lembrado pelos vivos quando falam acerca de uma pessoa falecida - as suas qualidades, os seus defeitos, as suas histórias, os seus gostos e as suas obras, isto é, o papel que ele desempenhou na vida.

É a personalidade que confere humanidade a cada homem e mulher e uma cultura humanista é necessariamente uma cultura personalista que olha cada homem ou mulher como um ser singular, e não como mais um ou mais uma no meio de uma massa anónima de gente.

A esta luz, a afirmação de Chiari Lubich, que é, ao mesmo tempo, a estratégia  dos Focolares para realizarem o seu ideal de unidade, segundo a qual "Não há unidade enquanto existir personalidade" (cf. aqui) é de uma desumanidade atroz. Ela choca directamente com uma das mais antigas e das mais valiosas tradições do catolicismo, a tradição que dá valor à vida porque torna irreparável a perda de qualquer ser humano - a tradição personalista.

Manipulando politicamente na hierarquia do Vaticano, os Focolares têm em curso um processo de beatificação de Chiara Lubich, cuja primeira fase está terminada (cf. aqui), mas que está ainda muito longe da sua conclusão, se é que alguma vez será concluído.  Têm a oposição dos Jesuítas que, em termos de manipulação política, já cá andam há mais tempo e não costumam deixar os seus créditos por mãos alheias (cf. aqui).

Os Jesuítas utilizam como principal argumento contra a beatificação a frase proferida por Chiara Lubich segundo a qual no centro da unidade da comunidade focolare está ela própria, e não Cristo (cf. aqui). Assim sendo, à luz do cristianismo católico, Chiara Lubich não é uma santa, mas uma maníaca egocêntrica convencida que era deusa, e o Movimento dos Focolares não é um movimento religioso e católico, mas uma seita que se dedica a idolatrar a personalidade da sua fundadora.

Numa sociedade livre e democrática, uma ou outra destas duas situações é aceitável, sejam os Focolares um movimento católico ou uma seita idólatra. E ainda que a sua estratégia de actuação para realizar o seu ideal de unidade, que passa pela mais radical despersonalização dos seus membros, possa ser desumana, ainda assim, desde que tudo seja feito entre pessoas maiores de idade e de consentimento esclarecido, não deixa de ser aceitável.

Como foi referido anteriormente, a despersonalização envolve, entre outras condições, a renúncia completa à liberdade de expressão e pensamento, a submissão total à autoridade, a pobreza, a devassa da intimidade, a obediência cega à hierarquia, a paralisação do intelecto e da razão. Tudo isto consegue ser aceitável desde que seja aceite livremente.

Aquilo que não é aceitável é que seja um juiz-desembargador de um tribunal superior do país a dar cobertura a tudo isto e a promover a organização onde tudo isto se faz. É que o juiz Vaz Patto não é meramente um simpatizante dos Focolares e um idólatra da sua fundadora. Ele é o chefe da redação do órgão oficial  do Movimento dos Focolares - a revista Cidade Nova (cf. aqui).

O Código de Conduta dos juízes inclui entre os princípios que devem guiar a sua acção o princípio do humanismo (cf. aqui, artºs. 3º e 8º). Como pode o juiz Vaz Patto conciliar a sua condição de juiz com a de chefe da redacção do jornal oficial de um movimento que pratica rotineiramente a despersonalização dos seus membros (maioritariamente mulheres) e que, ainda por cima, está em directa contradição com a tradição humanista dos portugueses que é uma tradição de personalismo católico?

O Código de Conduta dos juízes  também impõe limites à liberdade de expressão dos magistrados judiciais quando ela possa pôr em causa a sua imparcialidade e independência (Artº 10º). Porém, para o juiz Vaz Patto não existem limites nem regras de conduta. Ele vive em rédea livre, ele é um juiz à solta. 

Por falar em imparcialidade (Artº 5º): Como vai o juiz Vaz Patto julgar amanhã um caso de violência doméstica em que a mulher acusa o marido de a querer despersonalizar, proibindo-a de falar, obrigando-a à mais completa sujeição e obediência, proibindo-a de usar a razão, apropriando-se de todo o dinheiro que ela ganha?

Creio que o juiz Vaz Patto vai absolver o homem e condenar a mulher por difamação do marido porque tudo aquilo de que a mulher se queixa são, afinal, comportamentos absolutamente normais para o juiz. No fim de contas, são comportamentos rotineiramente praticados na seita de que ele próprio faz parte e cujo órgão de comunicação oficial ele próprio chefia.

(Continua)

Sem comentários: