29 novembro 2020

A juíza Rangel (X)

 (Continuação daqui)


X. Um casino

No espaço de exactamente dez meses, no acórdão 31/20 de 16 de Janeiro e no acórdão 646/20 de 16 de Novembro, o Tribunal Constitucional, considerado o tribunal mais alto do país, a propósito da mesma questão de direito - a do conflito entre uma lei constitucional (artº 32º) e uma lei ordinária (nº 20/2013) -, à qual até um estudante de Direito sabe responder, conseguiu dar duas respostas diametralmente opostas.

A questão tem várias formulações possíveis, todas equivalentes, mas a principal para efeitos práticos é a seguinte: "Pode alguém que, pela primeira vez, tenha sido condenado pela Relação em pena de multa, recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça?".

Aos militares da GNR o TC respondeu que Sim, ao senhor Jota o TC respondeu que Não.

Outra formulação possível é a seguinte: "Qual a lei que prevalece - a lei constitucional (artº 32º) ou a lei ordinária (nº 20/2013) - quando alguém foi condenado pela primeira vez na Relação em pena de multa?"

Aos militares da GNR o TC respondeu "A lei constitucional", ao senhor Jota o TC respondeu "A lei ordinária".

Numa terceira formulação, a questão pode apresentar-se assim: "A um cidadão que tenha sido condenado pela primeira vez na Relação a uma pena de multa, é-lhe reconhecido o direito ao recurso previsto no artº 32º da Constituição?".

Aos militares da GNR o TC respondeu que Sim,  ao senhor jota o TC respondeu que Não.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) considera esta situação uma grossa violação do "direito de acesso a um tribunal" previsto no artº 6º da CEDH e para o qual o TEDH possui desde há muitos anos uma extensa jurisprudência.

-Violação do direito de acesso a uma tribunal? - perguntar-se-á. Mas então o senhor Jota não acedeu a um tribunal?

Não. O senhor Jota pensou que estava a aceder a um tribunal, mas saiu-lhe um casino. A resposta do TC à mesma questão de direito é aleatória, tanto pode ser Sim como Não, e é a aleatoriedade que caracteriza os jogos de casino. Um tribunal, que seja um verdadeiro tribunal, não faz isto, dá sempre a mesma resposta à mesma questão. É o chamado princípio da segurança jurídica.

Na realidade, aquilo que o TC faz nos dois acórdãos referidos é bem pior do que aleatoriedade ou mera lotaria. É pura discricionariedade ou arbitrariedade. A aleatoriedade é independente da vontade humana, mas a discricionariedade ou a arbitrariedade não é. 

Por isso, a questão vai para além da violação do artigo 6º da CEDH e do direito de acesso a um tribunal. É uma questão de discriminação que é proibida pelo artº 14º da CEDH e pelo artigo 13º da Constituição (cf. aqui).

Diz a CEDH:

"ARTIGO 14° Proibição de discriminação. O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação" (cf. aqui)

De facto, a que propósito é que, segundo o Tribunal Constitucional, os militares da GNR podem gozar do direito constitucional a um recurso mas o senhor Jota não pode?

A resposta a esta questão é simples e já foi dada. É que o Tribunal Constitucional não é um tribunal de justiça. O Tribunal Constitucional é um tribunal político que está lá para defender o status quo e perseguir todos aqueles que, pelas suas "opiniões políticas ou outras" (sic)  possam ameaçar os poderes instituídos, como os dos partidos políticos.

A esta luz, a juíza Rangel e a função que desempenha devem ser vistas com alguma comiseração. Ela é uma comissária política,  uma mulher-de-mão do PSD no Tribunal Constitucional que, sob a aparência de estar a fazer justiça, persegue os adversários políticos deste partido. É essa a sua missão e é para isso que ela é altamente paga. 

A juíza Rangel termina o seu mandato de nove anos no Tribunal Constitucional dentro de poucos meses, mas outro ou outra lhe sucederá até ao dia em que os portugueses compreendam a verdadeira natureza do Tribunal Constitucional e decidam acabar com ele.  

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