16 agosto 2020

O vírus (III)

(Continuação daqui)


III. Falsificação da contabilidade

A rapidez com que as Procuradoras Adjuntas Lili e Fafá constituíram o magistrado X arguido pelo crime de ocultação do vírus, e a determinação com que lhe ordenaram que mostrasse o vírus, não foram inteiramente motivadas por razões de justiça.

No início de maio, quando o estado de emergência terminou, e os magistrados voltaram ao trabalho no Ministério Público, o magistrado X telefonou para os Recursos Humanos a dizer que não podia comparecer ao trabalho porque estava com o vírus.

A notícia causou grande impacto entre os seus colegas. No Ministério Público, os magistrados eram promovidos pelo tempo e, para alguns, as probabilidades de promoção aumentavam cada vez que um deles morria. Ora, o magistrado X tinha atrás de si, na hierarquia, 81 Procuradores da República e 782 Procuradores Adjuntos (cf. aqui) que ficaram em pulgas com a iminência da sua morte.

Para tirar aquilo a limpo, e saber se o magistrado X estava ou não em risco de vida, o Ministério Público decidiu pôr o magistrado X sob escuta, como fazia a milhões de cidadãos no país por motivos muito mais banais.

Ao final de dois meses, porém, quando a transcrição das escutas circulou entre os colegas, não havia um telefonema - um telefonema sequer - do magistrado X para um hospital, um médico ou uma enfermeira a falar do covid19. Aquilo que havia eram telefonemas diários para uma jovem colega 15 anos mais nova do que ele, no patamar inferior da hierarquia, uma Procuradora Adjunta, com apenas dois anos, três meses e quatro dias de antiguidade na categoria.

Numa tórrida conversa telefónica que teve lugar a um domingo de madrugada, pelas quatro e um quarto da manhã, o magistrado X prometia à sua jovem colega a felicidade eterna usando como argumento um vírus de 25 centímetros. Foi sobretudo esta conversa telefónica que causou grande alvoroço no Ministério Público, especialmente no sector masculino. Por inveja, claro.

É que nem mesmo no tempo do vírus da gripe A, quando o famoso burlão José Lorosa de Matos seduziu duas magistradas do Ministério Público (cf. aqui e aqui) se tinha ouvido falar dum vírus assim. 23 centímetros e era um pau. Agora, 25 centímetros era uma coisa absolutamente descomunal e nunca ouvida nos corredores do Ministério Público.

Estava agora nas mãos das magistradas Lili e Fafá a possibilidade de esclarecerem esse grande mistério que era o tema das conversas diárias, à boca pequena, dos magistrados e das magistradas do Ministério Público desde o desconfinamento - a saber, se era possível ou não o magistrado X, Procurador da República, 50 anos de idade, nascido em Penafiel, 661º na lista de antiguidades, com 5 dias de experiência na categoria, mas quase vinte anos de antiguidade como Procurador Adjunto, estar em casa de baixa, com um vírus de 25 centímetros.


Magistrado X, de quem se dizia ter um vírus de 25 centímetros


À segunda insistência a Procuradora Fafá, que era a mais atrevida, tendo ao lado a sua colega Lili, subiu o tom:

-Senhor Procurador da República faz favor de mostrar o vírus… é a segunda vez que lhe ordeno...

O magistrado X tentou resistir, argumentando que nos termos do artº 128º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), um cidadão não era obrigado a mostrar o vírus contra a sua vontade.

Mas a Procuradora Fafá não foi na conversa:

-O senhor Procurador da República é conhecido por proclamar aos quatro ventos que a CEDH não se aplica a Portugal…

A argumentação manteve-se assim renhida durante mais de um quarto de hora, até que o magistrado X acabou por ceder. Levantou-se da cadeira, baixou os calções de banho e, acto contínuo, a magistrada Fafá, experiente na matéria e a sorrir, apontou-lhe a lupa.

O magistrado X acabou por ceder


Segundos depois, a Procuradora Fafá dizia em voz baixa para a sua colega Lili, que também sorria ao lado:

-Três centímetros vírgula dezasseis…

Dezoito anos depois foi deduzida a acusação. O magistrado X iria responder em tribunal por três crimes que, em cúmulo jurídico, o levariam quinze anos para a prisão. Os dois primeiros eram mais ou menos óbvios - propagação de doença e ocultação do vírus. Mas o mais óbvio de todos era mesmo o terceiro, um crime que o Ministério Público também tinha imputado, anos antes, ao célebre banqueiro Ricardo Salgado - o crime de falsificação da contabilidade.

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