O problema principal do sistema de justiça em Portugal é a sua cultura corporativa. Um dos elementos centrais desta cultura é o seu atavismo.
Os juristas portugueses, em geral, pensam e agem como verdadeiros provincianos, como se Portugal fosse ainda a sociedade autoritária, fechada, pessoalizada e pobre dos tempos de Salazar, uma espécie de quinta de que eles próprios são os capatazes.
Uma das expressões mais flagrantes deste atavismo cultural é o facto de a esmagadora maioria dos juristas portugueses não dominar uma segunda língua de trabalho, para além do português.
Um médico, um economista, um engenheiro mantém-se actualizado lendo e comunicando na língua internacional das profissões que é, em primeiro lugar, o inglês, e em segundo, o francês. Para os juristas, pelo contrário, o mundo parece terminar em Badajoz. Eles não são, em geral, competentes naquilo que a até um empregado de restaurante é competente - exprimir-se profissionalmente numa segunda língua.
Esta cultura provinciana de pequena comunidade fechada que prevalece na justiça portuguesa choca de frente com a cultura democrática, de sociedade grande e aberta que está presente nos tratados internacionais que Portugal assinou após ter aderido à democracia, como é o caso da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
A capa de hoje do Correio da Manhã é um exemplo acabado desta cultura atávica. Refere-se a um processo-crime conduzido pelo Ministério Público desde há oito anos contra vários arguidos, incluindo o presidente da EDP, António Mexia.
Já devia ter ocorrido à defesa um recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa por violação do artº 6º da CEDH, segundo o qual qualquer cidadão tem direito à realização da justiça num "prazo razoável". Este é o direito por cuja violação Portugal mais vezes tem sido condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
Este recurso devia pedir o encerramento (arquivamento) imediato do processo, sob o argumento de que o "prazo razoável" já está largamente ultrapassado. Se em oito anos o Ministério Público não conseguiu descobrir crime nenhum contra o presidente da EDP é porque não há crime nenhum.
Por outras palavras, os advogados portugueses deveriam começar a invocar a CEDH e a jurisprudência do TEDH desde logo perante os tribunais portugueses, e não apenas quando o processo está concluído em Portugal e no momento de recorrer para o TEDH.
É claro que uma das dificuldades para o fazer é a própria cultura atávica da justiça em Portugal. A maior parte dos juristas portugueses - advogados, juízes e procuradores do MP - não fala uma segunda língua, e as línguas oficiais em que se exprimem o TEDH e a sua jurisprudência são o inglês e o francês.
E é assim que, a partir de um processo que há muito devia estar arquivado, porque viola flagrantemente um dos direitos humanos fundamentais - que é o direito à justiça num prazo razoável -, um jornal de grande circulação transforma numa espécie de herói um homem que, em pleno século XXI, é o paradigma perfeito de uma das manchas mais negras da nossa história - a Inquisição, com a sua figura sinistra do juiz-inquisidor.
Sem comentários:
Enviar um comentário