26 março 2020

Operação Éter

O Brasil é um Portugal exagerado. Não apenas na dimensão geográfica, que é 95 vezes maior, ou na população, que é mais de 20 vezes a de Portugal.

O Brasil é um Portugal exagerado em todos os aspectos da vida. Tudo aquilo que existe de bom em Portugal existe ainda melhor no Brasil e em maior quantidade. Pelo contrário, tudo aquilo que é mau em Portugal, é ainda pior no Brasil e em quantidade exponenciada.

Está neste último caso o Ministério Público.

Ao longo dos últimos dias, aproveitando a crise do coronavírus, eu tenho vindo a salientar os poderes que o Ministério Público adquiriu no Brasil ao ponto de ser ele a comandar a vida social neste período de crise.

Sob a forma de "recomendações", os departamentos locais do MP emitem verdadeiras ordens aos autarcas e outros agentes sociais (v.g., empresários). As "recomendações" são frequentemente acompanhadas da ameaça de que, se não forem cumpridas, os prevaricadores serão alvo de processos cíveis, administrativos ou mesmo penais.

Burocratas judiciais não eleitos dão ordens aos políticos eleitos pela população brasileira e ameaçam-nos de, em última instância, os levarem à prisão.

Como é que no Brasil se chegou a este ponto? E será possível que em Portugal se atinja idêntico exagero, que é, ao mesmo tempo, uma perversão da democracia - uma corporação de tiranetes a prevalecer sobre os representantes da população legitimamente eleitos? 

Estas são as questões às quais pretendo responder neste post, começando pela segunda.

Sim, é possível que em Portugal se chegue ao mesmo exagero do Brasil, e um passo decisivo nesse sentido foi dado muito recentemente com a chamada Operação Éter (cf. aqui).

Nesta Operação, em torno de alegadas irregularidades nas Lojas Interactivas de Turismo (LIT), foram constituídos 74 arguidos, dos quais 49 autarcas. Entre os autarcas, contam-se 18 presidentes de câmara, oito vice-presidentes e 16 vereadores.

Ninguém, no seu perfeito juízo, acredita que estas 74 pessoas, muitas das quais não se conhecem, e contando entre si várias dezenas - como os autarcas - que estão sujeitas a um escrutínio apertado da sua integridade pessoal em eleições em pequenas localidades, formem uma associação de criminosos. Ninguém acredita.

Que possam existir no meio destes 74 acusados dois ou três criminosos ainda se pode acreditar, agora que todas eles sejam criminosos não é crível de todo. A Operação Éter é, aliás, uma daquelas mega-operações do MP a propósito das quais a ministra da Justiça - ela própria chefe do MP de Lisboa antes de ser ministra - declarou recentemente no Parlamento que são monstros e que não são julgáveis (cf. aqui).

A Operação Éter não se destina, portanto, a fazer Justiça porque, segundo a ministra, uma acusação desta dimensão não é julgável.

Destina-se, então, a fazer o quê?

Política. Destina-se a fazer política que é isso que o Ministério Público faz disfarçado de andar a fazer justiça.

Aquilo que o Ministério Público, através da Operação Éter, visa transmitir a todos os autarcas do país, não somente aos 49 visados, mas a todos os outros que estão sentados a assistir, é a seguinte mensagem: "Fiquem sabendo que quem manda em cada naco do território português não são vocês, mas nós, que vos podemos desgraçar a vida a todo o momento".

E, na verdade, é com a vida "desgraçada" - para usar a expressão do José Miguel Júdice (cf. aqui) - que vão ficar os 49 autarcas e os outros arguidos, pois vão passar muitos anos, e vão gastar muito dinheiro, até que possam provar a sua inocência e limpar o seu nome da sujidade que sobre ele foi lançada pelos MP.

Aquilo que todos os autarcas vão fazer imediatamente é rodear-se de advogados - se possível de poderosas sociedades de advogados - que os defendam e que, no futuro, os aconselhem sobre as decisões que podem tomar e as que não podem tomar antes que venha o MP numa operação semelhante à Operação Éter e lhes desgrace a vida (um tema ao qual voltarei brevemente).

Aqueles autarcas que sejam mais avisados, ou que tenham menos dinheiro para pagar a  sociedades de advogados, vão fazer aquilo que já se faz no Brasil. Ficam à espera que o Ministério Público diga, a propósito de cada situação da vida social ou política, aquilo que se pode fazer e aquilo que não se pode fazer, para eles próprios depois tomarem decisões.

É assim que se faz no Brasil e é para lá que Portugal caminha. Mas, nesse dia, quem manda em cada torrão do território português já não são os autarcas eleitos pelo povo português, mas os tiranetes do Ministério Público que ninguém elegeu.  

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