20 dezembro 2019

perturbação do inquérito

No post anterior referi as duas medidas que, na minha opinião, são cruciais  para a reforma democrática da justiça que nunca foi feita em Portugal (ou Espanha). Uma delas é a reforma do Código do Processo Penal orientada pela ideia de equidade porque o actual CPP é profundamente desequilibrado (e, portanto, injusto) em favor da acusação e contra o réu.

Vou ilustrar este desequilíbrio ou falta de equidade com o caso da prisão preventiva. Nos termos do artº 204º do CPP (cf. aqui) a prisão preventiva pode ser decretada se houver perigo

a) de fuga;
b) de perturbação do inquérito;
c) de continuação da actividade criminosa;

É a alínea b) que me interessa (foi ela, por exemplo, que fundamentou a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates). Por extenso, diz assim:

b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova

Quer dizer, um arguido pode ser posto em prisão preventiva a fim de que os acusadores (isto é, os magistrados do MP) possam trabalhar à vontade e o arguido não possa destruir ou alterar provas.

Convém reiterar o argumento porque ele é de tal maneira injusto que se pode não compreender à primeira. O arguido é posto na cadeia para que os magistrados do MP possam trabalhar à vontade na acusação (incluindo o à vontade para fabricarem provas contra o arguido enquanto ele está, indefeso, na cadeia).

A questão que imediatamente se põe em termos de equidade e, portanto, de justiça, é a seguinte: então, e o arguido não tem o direito de trabalhar à vontade na sua defesa?

Parece que a resposta, em termos de equidade, só pode ser sim. Mas então, o arguido precisa de estar em liberdade, porque a prisão não é propriamente o local onde ele pode trabalhar à vontade para organizar a sua defesa.

A conclusão que se tira daqui não é a de que os magistrados do MP devam ser postos na prisão para que o arguido possa livremente organizar a sua defesa. A conclusão que se tira daqui é que o perigo de perturbação do inquérito não pode ser uma razão para a prisão preventiva. Favorece injustamente a acusação em detrimento da defesa. Falta equidade a esta alínea do artº 204º do Código do Processo Penal.

(Escusado será dizer - embora não seja esse o objectivo do post -, que a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates foi injusta).

Portanto, numa reforma democrática do Código do Processo Penal, esta alínea tem de ser retirada. Não é justo que se prenda uma pessoa preventivamente só pela eventualidade de ela poder prejudicar a acusação.

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