No Canadá, o Québec organizou dois referendos sobre a independência e ninguém foi preso nem existiram tumultos. Mais recentemente, no Reino Unido, a Escócia fez o mesmo com os mesmos resultados pacíficos, e há quem peça já um segundo referendo.
Por que é que, em Espanha, a Catalunha não há-de poder fazer um referendo para decidir sobre a sua independência?
Porque a Espanha não tem a tradição democrática do Reino Unido, que á a mais antiga democracia do mundo, nem do Canadá, que é filho do Reino Unido e é um país que já nasceu democrático.
Em lugar de tratar o problema do independentismo catalão como um problema político - à semelhança do que fizeram britânicos e canadianos -, os espanhóis tornaram-no um problema judicial.
E fizeram isto porque a justiça espanhola (tal como a portuguesa) é muito susceptível de ser politizada.
O resultado foram independentistas presos, outro exilados, uma profunda divisão na sociedade espanhola que está para durar, e mais recentemente a humilhação da justiça espanhola (cf. aqui).
Quando a justiça se deixa politizar, quem acaba mal, no fim, não são os políticos. São os juízes.
E por que é que isto é assim?
Existem duas razões principais que favorecem a politização da justiça em Espanha (como em Portugal).
A primeira é o Ministério Público, que sendo um órgão político e que, por isso mesmo, devendo estar dependente do poder executivo, vive cravado no sistema de justiça, disfarçado de órgão de justiça. Associada a esta impostura está obviamente o regime de impunidade em que vivem os magistrados do MP (chamados em Espanha fiscales, enquanto o MP se designa por Fiscalía).
A segunda razão é o Código do Processo Penal espanhol que, tal como o português, é um plano inclinado contra o réu e em favor da acusação (isto é, do Ministério Público), reflectindo uma tradição que é herdeira da Inquisição.
Um ´Código do Processo Penal (CPP) assim produz dois resultados. O resultado bom é que um criminoso, que seja um verdadeiro criminoso, e que seja apanhado nas malhas da justiça, com este CPP não tem por onde escapar e vai de certeza ser condenado.
O lado mau é que um inocente, que não tenha cometido crime nenhum, mas que seja também apanhado nas malhas deste CPP, quase de certeza vai também ser condenado. E este é o grande defeito e o perigo de um CPP totalmente desequilibrado contra o réu e a favor da acusação.
Este CPP está mesmo a pedir a sua utilização política. É que um político que queira acabar com um seu adversário, o melhor que tem a fazer é arranjar contra ele uma acusação penal qualquer porque, uma vez nas malhas da justiça, o seu adversário vai quase de certeza ser condenado, mesmo que não tenha cometido crime nenhum. (Nota: a Inquisição raramente absolvia alguém).
Eu não sei como é que a Espanha vai sair do imbróglio em que se meteu ao judicializar a questão do independentismo catalão. O Vox, por exemplo, representando o nacionalismo espanhol mais exacerbado, já protesta contra a humilhação da justiça espanhola pela justiça europeia.
A Espanha está à beira de uma confrontação com a União Europeia em termos judiciais. Ou cede e permanece na UE, ou não cede e sai da UE. A permanência na UE quase de certeza implicará a independência da Catalunha porque todos os tribunais europeus acabarão a pronunciar-se de modo favorável aos catalães, como fez ontem o Tribunal de Justiça da União Europeia. A jurisprudência democrática está do lado da Catalunha, não do lado de Madrid.
Como quer que seja, uma coisa parece certa. A Espanha, tal como Portugal, precisa democratizar o seu sistema de justiça penal, uma reforma democrática da justiça que nunca fez. Para esse efeito, dois passos são absolutamente necessários:
i) Acabar com o estatuto de autonomia do Ministério Público e submetê-lo à tutela do poder político, acabando ao mesmo tempo com o privilégio da imunidade dos seus membros.
ii) Reformar o Código do Processo Penal. Esta reforma deve ser orientada por uma ideia directora - a ideia de equidade - visando tornar o processo penal um processo equitativo, que dá igual peso à acusação e à defesa.
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