Quando, no início do século passado, Afonso Costa ambicionou expulsar os padres e acabar com a Igreja Católica em Portugal, ele talvez tenha acreditado que os portugueses, por falarem mal dos padres e contarem anedotas acerca deles, os detestavam e os queriam ver pelas costas.
Enganou-se. Quem acabou expulso (exilado) foi ele. Os portugueses não podiam passar sem os seus padres e a sua Igreja.
É o mesmo com os políticos. À mesa do restaurante e do café, na tertúlia, nas páginas online dos jornais, os portugueses dizem mal dos políticos e inventam histórias escabrosas acerca deles. Mas ninguém se deve deixar enganar, como Afonso Costa. Os portugueses não podem passar sem os seus políticos e o seu Estado.
Um artigo que escrevi há onze anos, e que ainda hoje é muito partilhado neste blogue, tinha o título "the business of fiscalizing" (cf. aqui). Referia-me àquele traço da cultura portuguesa moderna segundo o qual, em qualquer área da vida económica e social, há mínima coisa que corra mal, os portugueses viram-se para o Governo e para os políticos a pedir que eles mandem fiscalizar.
Os portugueses adoram fiscais, e não podem passar sem eles - escrevia eu na altura - porque não confiam uns nos outros para além do círculo imediato da família e dos amigos. O fiscal é uma figura paradigmática da vida portuguesa, a tal ponto que muitas vezes se identifica ao longe. Quando avistamos um grupo de cinco homens de volta de um buraco aberto na rua, normalmente dois estão a trabalhar e os outros três estão de pé a olhar, às vezes de mãos nos bolsos. Estes últimos, são, obviamente, os fiscais.
Portugal está hoje cheio de fiscais, no sector financeiro, na saúde, na educação, nas praias, nos alimentos, existem fiscais para tudo, frequentemente com poderes de polícia e com capacidade para aplicar arbitrariamente coimas de milhões de euros que num ápice levam empresas à falência e arruínam a vida de muitos cidadãos (v.g., aqui e aqui). A situação é tal que, em certos sectores de actividade, já existem fiscais de fiscais.
Era esta massa de funcionários públicos que Adam Smith desprezava quando dizia que nunca conheceu grandes bens feitos por aqueles que trabalham para o bem-público. São eles que engrossam aquela casta de portugueses que trabalham para o Estado - cerca de 700 mil - que ganham, em média, 60% mais dos que os outros três milhões e oitocentos mil que trabalham no sector privado e que oficialmente trabalham cinco horas menos por semana. (cf. aqui)
Por que será que, numa sociedade inspirada pelo liberalismo, não existe esta cultura de fiscais que, em muitos casos, têm por mera função olhar enquanto os outros trabalham, ao mesmo tempo que ganham quase o dobro destes, quando os seus salários são ajustados pelo tempo de trabalho?
A resposta é ainda religiosa, e fruto da cultura religiosa. É que no calvinismo existe uma relação directa entre o homem e Deus, e é Deus em Pessoa que lhe abre a porta do céu ou lha fecha. Ao passo que no catolicismo existem fiscais à porta do céu para escrutinar quem merece entrar e quem não merece. São os padres.
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