Quando se trata dos pobres, nós imaginamos o Deus calvinista em frente deles, a inquiri-los olhos nos olhos, por que é que faltaram à sua chamada (calling)
-Dei-vos inúmeras capacidades (inteligência, força física,...) e talentos (jeito para isto e para aquilo…) e vocês não os utilizam para se livrarem dos horrores da pobreza?
Já o Deus católico, quando se trata dos pobres, em lugar de aparecer à frente deles, inquirindo-os e recriminando-os por terem faltado à chamada (calling), e exortando-os a mudar de vida, aparece ao lado deles, protegendo-os, olhando-os como vítimas, confortando-os.
Em relação aos pobres, O Deus calvinista é um pai austero e exigente, que os chama à razão e os encoraja à acção. Pelo contrário, o Deus católico faz-se substituir pela Mãe - que é a Igreja, a figura de Maria - que se põe do lado deles, os apaparica e os desculpa, que nunca lhes exige nada, e certamente que nunca os chamará à razão.
"Ao lado dos pobres" é precisamente o título de uma Nota sobre a pobreza emitida recentemente pela Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), um organismo laico da Conferência Episcopal Portuguesa, presidido pelo juiz Pedro Vaz Patto (cf. aqui)
A Nota começa por contar os pobres existentes em Portugal, que são avaliados em 21,6% da população, para prosseguir dizendo que eles no mundo são ainda proporcionalmente mais numerosos.
E, na realidade, são. Falando apenas do mundo ocidental - isto é, dos países tocados pela influência cristã - os pobres são particularmente numerosos nos países de tradição católica, muito mais do que nos países de tradição calvinista ou luterana.
Tomando como referência o Novo Mundo - isto é, o continente americano, que permite ver com clareza o ponto que pretendo ilustrar -, os pobres são mesmo muito numerosos nos países da América latina, de cultura predominantemente católica, como o Brasil, a Venezuela, Salvador ou o México. Pelo contrário, são incomparavelmente mais escassos nos países da América do Norte (EUA e Canadá) tocados pela cultura calvinista e liberal.
A Nota da CNJP prossegue com uma enumeração dos males da pobreza, aos quais eu acrescentaria o maior de todos - a morte prematura. Nos países pobres, a esperança de vida à nascença é incomparavelmente mais baixa do que nos países ricos (nestes supera já os 80 anos, naqueles não chega aos 50), e a mortalidade infantil é astronómica (da ordem dos 200 por mil nascimentos), enquanto nos países ricos já foi praticamente debelada.
Segue-se a tradicional vitimização dos pobres que, segundo a Nota da CNJP, são marginalizados, e, mais adiante, não podem ser reduzidos a meros dados estatísticos.
No entretanto, lá aparece, de forma implícita, a célebre "Opção preferencial" que o Deus católico tem pelos pobres. Como os pobres morrem mais cedo, esta "Opção preferencial" já me levou a ironizar que é por virtude dela que Deus chama os pobres mais cedo para junto de Si.
Aquilo que nunca aparece na Nota da Comissão Nacional Justiça e Paz sobre a pobreza é o mínimo indício de responsabilização dos próprios pobres sobre a situação em que se encontram. Não, eles não têm nada que ver com isso, nenhuma quota-parte de responsabilidade pela sua situação de pobreza lhes é assacada. Eles são as vítimas.
Como não existe na Nota da Comissão uma única sugestão que seja, uma única luz que dê aos pobres ao menos a esperança de um caminho que lhes permita, pelos seus próprios meios, sair da pobreza - mesmo se esse caminho existe e está descoberto há cerca de dois séculos e meio.
Séculos de hostilidade por parte da Igreja Católica à liberdade individual e à democracia, à limitação dos poderes do Estado, à literacia e à razão, e à economia de mercado - numa palavra, ao liberalismo e aos valores de uma sociedade moderna - não permitem à Comissão Nacional Justiça e Paz sequer mencionar a solução para acabar com a pobreza.
Nem talvez seja conveniente. Quando os pobres acabarem, que papel fica reservado à Comissão Nacional Justiça e Paz? Talvez nenhum. E muitas igrejas vão ter de fechar.
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