02 julho 2019

Que amor é este?


O Miguel Sousa Tavares exibiu no seu último artigo do Expresso (cf. aqui), uma faceta que lhe é reconhecida, que é a sua profunda indignação com os poderes que o Ministério Público adquiriu em Portugal nos últimos anos, e os abusos que comete por virtude desses poderes extraordinários.

De meros advogados do Estado, os procuradores do Ministério Público passaram a ter poderes de polícia criminal e também poderes que são próprios dos juízes. Em cima disso, não prestam contas a ninguém.

Um destes últimos poderes resulta do monopólio que possuem da acusação criminal no país. Se me roubarem a carteira, o assunto só vai a tribunal e o carteirista só será julgado se o Ministério Público deixar, e mesmo aí quem acusa é o MP e não eu. Se, pelo contrário, o Ministério Público considerar que não há indícios suficientes de que o carteirista me roubou a carteira, o carteirista não vai a tribunal e não há crime nenhum.

Por outras palavras, o Ministério Público é uma espécie de porteiro sentado à entrada do sistema de justiça criminal, de tal maneira que só entra no sistema de justiça criminal aquilo que o Ministério Público deixar. Ora, esta é uma função - a de julgar o que é crime e o que não é crime - que deveria competir a juízes e não a meros advogados do Estado. (Excluo obviamente do meu conceito de juiz a figura do juiz-de-instrução que trabalhando em conjunto com a acusação protagonizada pelo Ministério Público perde todas as características de imparcialidade necessárias a um juiz. É um acusador).

Ora este poder de deixar entrar certos crimes no sistema de justiça criminal mas barrar a entrada a outros é um poder extraordinário que corrompe a credibilidade da justiça e permite a sua manipulação, e que eu vou ilustrar usando dois exemplos.

O primeiro exemplo, é o meu case-study (cf. aqui). A Cuatrecasas e o seu director acusaram-me de dois crimes - difamação agravada e ofensa a pessoa colectiva. À luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a que Portugal está vinculado, nada disto é crime. Mas o Ministério Público considerou que era crime e o caso foi para julgamento.

Portanto, neste caso não há crime mas o MP considera que há crime.

O segundo exemplo vem de um outro comentário do Miguel Sousa Tavares relativo a um assunto que tem sido tratado neste blogue (cf. aqui). Perante a indignação do Arlindo Marques, o "Guardião do Tejo", e outros cidadãos de que uma empresa de celulose andava a poluir o Tejo, o Ministério do Ambiente mandou fazer análises às águas, e os resultados foram mandados para o Ministério Público. Naturalmente, se os resultados das análises indicassem poluição, o Ministério Público teria de abrir um processo crime contra a empresa de celulose.

E o que fez o Ministério Público?

Proibiu a divulgação dos resultados das análises alegando que estavam em segredo de justiça. Consequência: não há procedimento criminal contra a empresa de celulose.

Portanto, neste caso, há crime (se não houvesse, os resultados das análises teriam sido divulgados), mas o MP considera que não há crime.

Quem comentou este caso, incluindo o MST, falou na proximidade entre o Ministério Público e um grupo económico que possui um jornal de grande divulgação. Mas não se apercebeu que o elemento mais importante desta história estava escondido: a Cuatrecasas é a advogada da empresa de celulose. 

Conclusão, mais uma vez o Ministério Público decidiu a favor da Cuatrecasas e, muito provavelmente, como no caso anterior, sob instigação da Cuatrecasas.

Reunindo os dois exemplos,  a moral da história é muito simples. Num caso, a Cuatrecasas queixa-se, não há crime, mas o MP decide que há crime, deixando a Cuatrecasas a sorrir. No outro, há crime, a Cuatrecasas defende o seu cliente, e o MP, pela sua inacção, decide que não há crime, deixando mais uma vez a Cuatrecasas (e o seu cliente) a sorrir.

Que amor é este que existe entre o Ministério Público e a Cuatrecasas em que - pelo menos nestes dois exemplos -, as decisões do Ministério Público, por mais aberrantes que sejam, deixam sempre a Cuatrecasas feliz?

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