07 abril 2019

Juiz Paula Guerreiro

Eu gostaria agora de utilizar o meu case study (cf. aqui) e o comentário televisivo que está na sua base (cf. aqui) para ilustrar algumas teses que tenho vindo a defender neste blogue ao longo dos anos.

Uma delas é que a cultura portuguesa, que é uma cultura de raiz católica, não é democrática e que significativas alterações nos comportamentos e nas instituições são necessárias para que Portugal venha a ser um país democrático - que não apenas no nome. Muitas delas estão ainda por fazer.

Outra tem que ver com o carácter feminino da cultura portuguesa (católica) por oposição ao carácter masculino (protestante) da cultura dos países do norte da Europa donde importámos a democracia partidária.

Começo por este segundo tema, relembrando que na cultura católica é a mãe que tem o papel decisivo na educação dos filhos - daí o seu carácter feminino -, reflectindo o papel central da figura de Maria no catolicismo.

Pelo contrário, na cultura protestante - que elimina o culto de Maria (e dos santos) e o presta apenas a Cristo (princípio protestante Solo Christus) -, é a figura do homem (pai) que tem esse papel decisivo, daí o carácter masculino desta cultura.

Em suma, no catolicismo o espírito das pessoas, logo desde a infância e no seio da família, é mais moldado pela personalidade da mãe do que do pai. Acontece ao contrário no protestantismo.

Dito isto, a pergunta: como é que a cultura católica sugere ao Paulo Rangel que reaja perante as palavras do meu comentário televisivo?

Assim (dramatizo, obviamente, as expressões):

-Paulinho... meu filho...coitadinho... vai já fazer queixa à mãezinha que o Arroja te ofendeu!...

E o Paulo Rangel, triste, abatido e ofendido (cf. aqui), vai direito à Justiça - que é uma figura de mulher e mãe -, que o conforta e o consola, aplicando-me uma pena pecuniária que lhe oferece a ele como indemnização, e que o torna de novo feliz.

E a cultura protestante, que é a cultura democrática, como é que sugere ao Paulo Rangel que reaja?

Assim:

-Paulo... faz-te homem... e vai ao Porto Canal defender-te do Arroja, tanto mais que ele te convidou! É lá que tu vais dizer a tua verdade e limpar a tua honra, não no colo da mãezinha.

Aquilo que é curioso é que no Tribunal da Relação do Porto, foi um homem - o juiz Pedro Vaz Patto - que acolheu a versão católica (feminina), e foi uma mulher - a juiz Paula Guerreiro - que acolheu a versão protestante (masculina) (cf. aqui).

Na realidade, escreve a juiz Paula Guerreiro a concluir a sua declaração de voto:

"Reafirma-se que a nosso ver a finalidade visada pelo arguido [Pedro Arroja] era essencialmente - como se depreende dos factos - a discussão e o debate da questão, de forma pública e transparente no programa televisivo onde as expressões em causa foram difundidas.
Assim sendo, consideramos que o interesse público em causa [construção de um hospital de crianças] levava a que se devesse dar preponderância à tutela da liberdade de expressão em relação ao interesse do ofendido [Paulo Rangel] à sua reputação, a qual sempre poderia ser reposta na referida discussão e explicação, que lhe seria facultada também de forma publicitada, caso o convite do arguido para debater a questão tivesse sido aceite".

A declaração de voto da juiz-desembargadora Paula Guerreiro é uma curta, maravilhosa peça de jurisprudência democrática. Pelo contrário, a sentença redigida pelo seu colega, juiz desembargador Pedro Vaz Patto, é uma peça digna do fundamentalismo católico que tão má imagem deixou ao país em certos períodos da sua história e decididamente contribuiu para o seu atraso cultural.

O país tem uma cultura católica na sua história, mas hoje é oficialmente uma democracia partidária, que é um regime político de inspiração protestante. É a juiz Paula Guerreiro que tem razão, e é ela que interpreta a jurisprudência democrática do TEDH.

O Paulo Rangel deveria ter ido ao Porto Canal expor a sua verdade e limpar lá a sua honra, em lugar de ir fazer queixinhas para a Justiça. Este último comportamento é próprio da cultura feminina, acolhedora e híper-protectora do catolicismo. Vigorou oficialmente no tempo de Salazar e no tempo da Monarquia Absoluta que, em certo período, foi também o da Inquisição.

Que a democracia partidária portuguesa tenha o Paulo Rangel como (euro)deputado é uma grande ironia. Pelo contrário, com aquela hipersensibilidade à honra e aversão ao debate musculado e à liberdade de expressão, ele daria um excelente deputado do Estado Novo.

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