04 março 2019

Neto de Moura e a Liberdade (II)

(Continuação daqui)

II. A Relação do Porto


Quando soube que iria a julgamento por ofensas à Cuatrecasas e ao seu director  procurei documentar-me sobre a jurisprudência do caso. Era uma caso de conflito de direitos - entre o direito ao bom nome (ou direito à honra) e o direito à liberdade de expressão.

O direito à liberdade de expressão tem que se lhe diga. É o direito fundacional da democracia. A democracia partidária, tal como a conhecemos hoje, nasceu do protesto público, inicialmente contra as autoridades religiosas (Igreja Católica), mais tarde contra as autoridades civis. É um produto da cultura protestante do norte da Europa, cujas seitas religiosas viriam a inspirar a criação dos modernos partidos políticos.

A jurisprudência daquele conflito de direitos - direito à honra vs. direito à liberdade de expressão - é fixada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em torno do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Portugal subscreveu a Convenção em 1976.

Em Portugal a palavra jurisprudência significa normalmente um amontoado de acórdãos dos tribunais superiores, geralmente ordenados por ordem cronológica. Nos países com tradição democrática, a palavra tem um conteúdo diferente. É um conjunto de regras simples, resultantes das decisões dos tribunais superiores, que os juízes estão vinculados a seguir nas suas sentenças. Nestes países, as regras são claras e acessíveis a todos, e o cidadão sabe as linhas com que se cose.

Em breve, encontrei as regras formuladas em português (cf. aqui), por uma professora do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), que também é juiz. O CEJ é a instituição onde se formam os juízes e os magistrados do Ministério Público. A regra que considerei mais importante foi a regra nº 2: "A liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam".

Porém, uma coisa eram as regras claras que vinham do Tribunal de Estrasburgo e outra era a sua aplicação em Portugal - um país com uma profunda tradição antidemocrática e avessa à liberdade de expressão. Não era preciso recuar até à Inquisição. Bastava invocar o Estado Novo, que era liberal na esfera económica, mas anti-liberal na esfera política. A censura estava institucionalizada.

Na tradição portuguesa, o conflito entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão resolvia-se sempre em favor do primeiro.  A tradição democrática vinda do TEDH e do norte da Europa exigia agora que se fizesse ao contrário. Ora, uma mudança cultural assim radical exige tempo.

Quando comecei a estudar os acórdãos das Relações de Lisboa e Porto e do Supremo sobre esta matéria, dei-me conta que, embora Portugal tivesse aderido à CEDH em 1976, só há cerca de quinze ou vinte anos é que os nossos tribunais superiores começaram a aplicar a jurisprudência do TEDH - e, dos três, aquele onde essa tendência foi mais cedo discernível foi no Tribunal da Relação do Porto.

Não fiquei surpreendido. O Porto possui uma antiga tradição liberal de irreverência, que raia às vezes o desprezo, perante o poder político. Por isso, Portugal pode agradecer, em boa parte, aos juízes da Relação do Porto o triunfo institucional do direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra que é, ao mesmo tempo, o triunfo da democracia sobre a ditadura.

O juiz Neto de Moura é um desses juízes.

Sem comentários: