30 novembro 2018

à Martin Luther King

Tenho escrito sobre a ausência de cultura democrática entre os portugueses. Não é uma crítica de preciativa, é uma constatação. A democracia teve origem nos países de cultura protestante do norte da Europa. Portugal não apenas não aderiu ao protestantismo, como foi seu acérrimo adversário, juntamente com Espanha.

Não surpreende que, não possuindo tradição democrática, muitas das formas de pensar e agir dos portugueses, e as suas instituições, reflictam a sua tradição, que é uma tradição antidemocrática ou de poder absoluto.

Nos últimos meses, exemplifiquei esta tradição anti-democrática de séculos com o sector da Justiça. Mais recentemente, aflorei a mesma tradição anti-democrática na imprensa - um tema ao qual voltarei com mais desenvolvimento - quando tratei a forma como o JN tem reportado sobre a ala pediátrica do HSJ. Não se trata, obviamente, de caso único, pelo contrário, pertence ao caso geral da imprensa em Portugal.

Trata-se de uma imprensa própria de um regime ditatorial ou absoluto, em que os jornais são a voz do dono, repetindo e passando para a opinião pública, sem qualquer escrutínio, tudo aquilo que o poder político diz, ainda que seja uma mentira, um abuso, uma promessa vã, ou uma contradição do que dissera na véspera.

Mas foi no post anterior que aflorei um outro aspecto da falta de cultura democrática dos portugueses quando me referi à "tradicional passividade da opinião pública portuguesa".

Não basta apontar o dedo ao Governo por a ala pediátrica do HSJ estar hoje mais longe do que estava há três anos. Nem à comunicação social, que tem contribuído bastante para isso. O público português - cada um de nós - tem a sua dose de responsabilidade também.

Foi curioso ver ontem, pela primeira vez, em mais um excelente trabalho da Lusa, os médicos do HSJ a pronunciarem-se em voz alta contra as deploráveis condições de internamento das crianças. Sendo as pessoas que, por dever de ofício, mais perto estão da situação, há muito que deveriam ter vindo para os jornais (e não esperar que os jornais fossem ter com eles) denunciar aquelas condições "miseráveis" e "indignas" (palavras do presidente do HSJ que, numa cultura democrática, se demitiria após pronunciá-las, ou seria demitido).

A minha reacção foi: "Só agora?". Sim, só agora quando toda a gente fala no assunto é que os médicos, que foram os primeiros a conhecer o assunto e o conhecem há quase uma década, decidiram falar abertamente em público. Não há nada que os criticar, neste aspecto, são portugueses como os outros. Falta-lhes a tradição democrática que falta a todos os portugueses.

A democracia moderna teve origem na cultura protestante. Ora, a primeira e mais distintiva característica da cultura protestante, está no nome. Vem de protesto. Não o protesto em voz baixa à mesa do café ou no jantar de amigos, como fazem os portugueses. Mas o protesto público e de peito aberto que se faz nos jornais, nas televisões, nas conferências e congressos, nos livros e hoje também nas redes sociais e, em última instância na rua.

Não é o protesto corporativo, como o dos professores, dos enfermeiros, dos juízes, dos funcionários da CP ou da Carris. É o protesto público pelo bem e pela justiça, contra a mentira, contra o abuso, contra a prepotência e a incúria, e por aqueles que não se podem defender a si próprios, como é, notoriamente, o caso das crianças. É o protesto à Martin Luther King.

O poder quando é confrontado amedronta-se. O poder é cobarde.

Eu não consigo imaginar a situação da ala pediátrica do HSJ no país  de tradição democrática em que vivi durante anos. Não consigo. Mas que se pode fazer? Esse país já nasceu democrático, ao passo que Portugal nasceu absolutista e assim viveu a maior parte da sua história. Assim continua. Não é fácil mudar uma cultura. Não é fácil sequer mudar uma pessoa, quanto mais uma nação com quase nove séculos de história.

Sem comentários: