Esta semana um tribunal alemão produziu uma decisão, a propósito de Carles Puigdemont, o ex-líder do independentismo catalão, que está a causar um grande embaraço em Espanha - um embaraço político, mas sobretudo judicial.
Tratou-se de não reconhecer os crimes de rebelião e de sedição, o primeiro prometendo trinta anos de cadeia, pelos quais a Espanha reclamava a sua extradição. O tribunal alemão apenas se dispõe a extraditá-lo pelo menos grave dos crimes de que é acusado em Espanha - má-utilização de fundos públicos.
Enquanto dezoito independentistas se encontram em prisão preventiva acusados daqueles crimes, outros cinco, para além de Puigdemont, encontram-se fugidos à justiça espanhola pelas mesmas razões em diversos países da Europa - Suíça, Bélgica e Reino Unido. E, tal como a Alemanha, nenhum se dispõe a entregá-los pelos crimes de rebelião e sedição de que são acusados em Espanha.
Nos meios internacionais, incluindo os EUA, voltam as velhas acusações e gozações relativas à lenda negra e ao franquismo, enquanto a Espanha mobiliza os meios diplomáticos para defender a sua imagem.
No Parlamento Europeu, em reação à decisão do tribunal alemão, o líder do PP pediu a suspensão do espaço Schengen, e o candidato a presidente deste partido, Pablo Casado, diz que o orgulho da Espanha ficou ferido, e promete retaliar.
Na Catalunha, organizam-se manifestações para libertar os presos sob o argumento de que, se os factos que lhes são imputados, não configuram os crimes de rebelião e de sedição na Alemanha (ou em qualquer dos outros países mencionados), porque hão-de configurar em Espanha? (O crime menos grave, o de má-utilização de fundos públicos não dá lugar a prisão preventiva).
O que é que se passa aqui? O que é que existe na justiça espanhola (e, já agora também na portuguesa) e que não existe na justiça da Alemanha e dos países democráticos do norte da Europa?
A resposta simples é: não existe uma tradição democrática. A Espanha e Portugal vivem ainda à sombra de uma tradição de união de poderes - o executivo, o legislativo e o judicial - em que o poder judicial é um instrumento do executivo para eliminar os dissidentes e assegurar a conformidade e a unidade da comunidade. Nesta tradição, a justiça é utilizada para fazer política.
Pelo contrário, nos países de tradição democrática do norte da Europa e da América do Norte existe uma separação estrita de poderes, à política o que é da política (poderes executivo e legislativo), à justiça o que é da justiça (poder judicial). Fazer política usando a justiça é que não.
É este o choque. É o mesmo choque de há 500 anos e entre as mesmas potências, a Espanha e a Alemanha. É um choque que pode vir a pôr em causa a unidade da Europa. Duas culturas, a católica e a protestante, defrontam-se no âmago da questão - a da separação de poderes, e do poder judicial em particular.
A Espanha (e Portugal) foram sempre contra a separação de poderes. Não é fácil, de um momento para o outro, passarem a ser a favor. Por outras palavras, a democracia, que em Espanha e Portugal existe há pouco mais de 40 anos, não é apenas dar voto a cada cidadão. A democracia é, em primeiro lugar, uma questão de justiça. E a justiça em Espanha e Portugal nunca se reformou para a democracia, e não é fácil reformá-la.
É esta questão que pretendo tratar nos posts seguintes. E, naturalmente, para além da questão catalã, vou também voltar ao meu case study que, excepto na dimensão, tem muitas semelhanças com ela no que à justiça diz respeito. A principal é a de ser capaz de acusar (e condenar) pessoas por "crimes" que não são crimes nenhuns.
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