III. Conversar
A estratégia que o Papá Encarnação levava para o julgamento, eu consegui antecipá-la, como uma possibilidade real, meses antes. Está descrita aqui, e é reveladora também do carácter político da acusação.
Levava um regimento de testemunhas para dizer bem do Rangel - uma estratégia que eu agora chamo a "estratégia do salamaleque" -, eu não levava nenhuma para dizer mal dele. Não há dúvida que as expressões "politiqueiro" ou "jurista de vão-de-escada" revestem um carácter depreciativo. O assunto resolvia-se pelos números, e a condenação era certa.
Essa estratégia começou a correr mal desde o início. Em primeiro lugar, quando se revelou na primeira sessão de julgamento, o juiz era um homem, e eu gostei de constatar esse facto porque as mulheres são mais sensíveis ao salamaleque do que os homens. E também têm mais dificuldade em ser imparciais.
Em segundo lugar, antes de me começar a interrogar, o juiz disse-me que gostava de se colocar na posição do réu para poder julgar melhor, e era isso que eu queria ouvir. ("Ponha-se na minha posição e diga-me o que faria no meu lugar").
A primeira sessão do julgamento foi ocupada com o meu depoimento da parte da manhã, e com a audição da gravação das minhas declarações perante o Tribunal de Instrução Criminal da parte da tarde. As testemunhas só começaram a depôr na segunda sessão.
O primeiro foi o Paulo Rangel. Para além de procurar justificar as alegações que eu lancei sobre ele no meu depoimento, passou o tempo restante a falar bem dele próprio.
A seguir veio o Professor António Ferreira e foi aí que o descalabro começou. O primeiro a interrogá-lo foi o magistrado do MP. Perguntou-lhe se tinha visto o meu comentário na TV. Respondeu que não. O magistrado insistiu: não o viu na altura, ou nunca o viu? Nunca o viu, respondeu ele.
Ninguém poderia acreditar numa mentira daquelas.
As perguntas seguintes foram sobre detalhes da obra do Joãozinho. As coisas estavam a correr visivelmente mal para a acusação quando o interrogatório do Professor António Ferreira foi interrompido para almoço.
Foi nessa altura que, no sentido de inverter a direcção que o julgamento estava a tomar, o Papá Encarnação pediu ao Tribunal se podia alterar a ordem das testemunhas, e que fosse ouvido a seguir o Professor Paulo Mota Pinto (quem estava previsto a seguir era o ex-administrador do HSJ, João Oliveira), que tinha vindo expressamente de Lisboa para depôr naquele julgamento.
O Tribunal acedeu.
Depois do almoço, e ainda antes que o Paulo Mota Pinto pudesse testemunhar, a advogada de defesa derretia o Professor António Ferreira, com meia-dúzia de "jabs" e outros tantos "uppercuts".
Um dos momentos mais solenes que se viveu nesse dia em tribunal foi protagonizado a seguir pelo Papá Encarnação, antes da entrada da testemunha: ...O Professor Paulo Mota Pinto... Professor na Universidade de Coimbra...Ex-juiz do Tribunal Constitucional... que veio expressamente de Lisboa para depôr neste tribunal...embora viva em Coimbra...
Só lhe faltou tirar o lenço do bolso direito das calças, desdobrá-lo em gestos largos perante a audiência, assoar-se enquanto lhe era dada a palavra, e depois dobrar o lenço de novo em gestos pausados e grandes, e guardá-lo solenemente outra vez no bolso direito das calças, para fazer a figura do perfeito advogado de província.
Mas foi precisamente a testemunha Paulo Mota Pinto que desfez as ilusões estratégicas do Papá Encarnação.
Habitualmente, o juiz dá primeiro a palavra ao magistrado do MP para interrogar cada testemunha. Segue-se o advogado de acusação e finalmente, a advogada de defesa, reservando-se o juiz a prerrogativa de intervir quando considera necessário.
O magistrado fez aquilo que nos jogos de cartas ou dominó se chama "Passo". Foi a vez de o Papá Encarnação pôr o Paulo Mota Pinto a falar, fazendo aquilo que se esperava, dizer bem do Rangel. E ele assim fez, embora cometendo uma gaffe monumental no final. Em seguida, a advogada de defesa também "passou". E assim se consumou o depoimento de tão extraordinária personalidade.
Conclusão, o tribunal não estava nada interessado em ouvir falar bem do Rangel. Para isso, já lá tinha estado o próprio Rangel na sessão da manhã.
Veio a seguir a testemunha João Oliveira, sendo interrogado primeiro pelo magistrado do MP. Foi quando a coisa começou a ganhar foros de catástrofe. Não se lembrava de nada nem de ninguém, as memórias eram vagas, do pouco que se lembrava ou era mentira ou metia os pés pelas mãos. Tudo era distante e difuso para ele.
Nessa altura, devia haver alguém na sala com vontade de deitar aos mãos à cabeça, e não era de certeza o réu.
Quando o magistrado terminou o interrogatório, faltava um quarto para as cinco. Seguir-se-ia o Papá Encarnação. O juiz perguntou-lhe quanto tempo esperava demorar a interrogar a testemunha.
O Papá Encarnação, naquela sua voz pausada e gesto largo, declarou então que o Dr. João Oliveira e o Dr. Avides Moreira eram as testemunhas principais (desvalorizando implicitamente as testemunhas Paulo Rangel, António Ferreira e Paulo Mota Pinto). Iria demorar, pelo menos, quarenta e cinco minutos a interrogar o Dr. João Oliveira.
O juiz, que se esforça para que as sessões não terminem muito para além das cinco da tarde, decidiu então que os trabalhos seriam interrompidos naquele momento, e nova sessão foi marcada para o dia 14 de Março.
O Papá Encarnação pareceu feliz e aliviado. Toda a gente na sala deve ter percebido que ele precisava de "conversar" a testemunha.
Sem comentários:
Enviar um comentário