No seu depoimento, o Professor António Ferreira já tinha insinuado perante o tribunal que tinha sido eu a pedir-lhe que me deixasse realizar a obra do Joãozinho por via mecenática, dando continuidade a um projecto que ele próprio iniciara.
Mas foi o Dr. João Oliveira, que depôs logo a seguir, que traçou o perfil mais completo da figura que eu representava aos seus olhos e, mais geralmente, da administração do HSJ.
Era a figura de um louco, que ele mal conhecia e a quem nunca deu importância, que foi lá um dia bater à porta oferecer-se para realizar uma obra que era obviamente irrealizável - construir por via mecenática um hospital pediátrico no valor de 20 milhões de euros.
Durante cerca de um ano e meio, o louco andou por aí à solta, invocando o nome do HSJ, a fazer coisas de que ele próprio nunca esteve a par, e às quais nunca ligou.
Lembrava-se distantemente de um evento qualquer que tinha sido realizado nas instalações do próprio Hospital a propósito daquela ideia. Sim, talvez tivesse estado presente o primeiro-ministro, mas já não se recordava bem.
Teve imensa dificuldade em recordar um nome - um só - de alguém que trabalhasse para a Associação Joãozinho. Sim, teve um ou outro contacto esporádico com uma senhora que lá trabalha, e que só após um grande esforço de memória ele conseguiu recordar o primeiro nome, mas errando na profissão.
Foi assim, à margem de tudo, porque nada daquilo tinha credibilidade, nem a obra nem as pessoas, que ele se manteve durante muito tempo. Até ao dia em que uma construtora lhe entrou pelos terrenos do Hospital dentro e instalou o estaleiro de uma obra, preparando-se de seguida para efectuar trabalhos de demolição.
Só nessa altura é que ele despertou para o que se estava a passar. E imediatamente mandou parar tudo até que fosse assinado um Protocolo que defendesse o interesse público.
Foi com esta imagem de mim próprio - descrita aqui de forma muito sintética - que eu regressei a casa após a segunda sessão do julgamento.
Durante quase três semanas, passei a olhar diária e obsessivamente para o espelho, ao levantar, ao deitar, à hora do almoço, e sempre que um espelho me aparecia pela frente. Numa ocasião, pelo menos, eu garanto ter visto do lado de lá uma figura de homem vestido de negro, os cabelos hirtos, os olhos muito abertos, os esgares na boca, os braços muito levantados. E a família sempre a sussurrar à minha volta: "Temos de lhe marcar uma consulta...".
O Dr. João Oliveira compareceu de novo na 3ª sessão do julgamento, até que chegou a vez de ser interrogado pela advogada de defesa. Na sessão anterior, ela já tinha desfeito em três tempos a testemunha António Ferreira, a quem mais tarde, apesar de tudo, reconheceu ser um homem decente.
Mas agora, era diferente. Agora ela tinha pela frente um verdadeiro gabiru.
A coisa foi de tal maneira que ao fim de dez minutos, ele já estava de cabeça perdida e a vê-las de todas as cores, sem saber o que dizer, balbuciava, devia estar a ver estrelas, já respondia a tudo que sim, a tal ponto que o interrogatório teve de ser interrompido para ele poder receber assistência.
Minutos antes, o golpe tinha sido fatal.
A advogada começou por o apanhar em contradições flagrantes sobre a obra do Joãozinho - cada pergunta, cada contradição - numa espécie de preâmbulo para o que estava para chegar.
Até que centrou o interrogatório na pessoa do presidente da Associação Joãozinho, pedindo-lhe para confirmar alguns dos traços da sua figura que ele tinha vindo a desenhar já desde a sessão anterior, enquanto ele acenava com a cabeça.
Até que ela explodiu.
Levantou-se, pediu ao tribunal que exibisse o documento tal a folhas tal que tinha recentemente juntado ao Processo, e solicitou ao Dr. João Oliveira que se dirigisse à tribuna com ela, onde o documento, entretanto, já estava a ser exibido.
A voz visivelmente exaltada, o indicador a apontar para um documento que não se via ao longe, perguntou-lhe:
-O senhor assinou este documento!?...
Foi o silêncio na sala, e foi verdadeiramente sepulcral.
Ele olhou demoradamente para o documento como se o estivesse a ver pela primeira vez, até que respondeu, cabisbaixo:
-Sim...,
um sim que quase nem se ouviu.
Sentado no banco dos réus, eu tive o sentimento de que, a partir daquele momento, já não era eu que estava a ser julgado. Eram os administradores do HSJ e os advogados da Cuatrecasas.
O documento-mistério é o que está citado aqui.
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