A minha situação era agora a de espectador das notícias que iam saindo sobre o Joãozinho, já que eu tinha deixado de contar para o assunto. E também de espera, talvez chegasse o dia em que eu fosse reintroduzido na equação outra vez. Os protagonistas eram agora a administração do HSJ e o Ministério da Saúde, mais este do que aquele.
Não tive de esperar muito tempo. No dia 19 de Janeiro a Margarida Gomes - sempre ela - fez um artigo de página inteira no Público onde descrevia as condições deploráveis em que se encontravam as crianças internadas no HSJ. Ora, desde há um tempo que sempre que a Margarida Gomes reportava sobre o Joãozinho, eu desconfiava que fosse verdade.
Mas este, no essencial, era verdade. Só que não trazia novidade nenhuma, excepto num ou noutro pormenor. Como era Inverno, ela lá conseguiu juntar um ou outro detalhe mais escabroso. Chovia dentro do barracão metálico que servia de ala pediátrica ao HSJ - ele próprio já tinha passado o prazo de validade - e, às vezes, faltava o aquecimento. Ora, chuva e frio no corpo não são propriamente a melhor terapia para crianças que se encontram internadas num Hospital.
Porém, o melhor estava para vir, e viria ainda no mesmo dia. Pelas sete da tarde - antes que alguém soubesse e publicasse no dia seguinte na versão em papel da concorrência -, a Margarida Gomes publicava na versão online do Público um outro grande artigo sobre a ala pediátrica do HSJ e este era verdadeiramente bombástico: "Governo liberta 21 milhões para tirar crianças dos contentores no S. João".
Adorei o título, eu que, às vezes, sou considerado o pai do neoliberalismo em Portugal: "Governo liberta...". A ideia de ver dinheiro a voar era muito mais realista do que aquela outra, que eu também já tinha considerado como hipótese teórica, de algum dia ver porcos a voar. E muito mais excitante porque eu próprio também podia apanhar algum.
Julgo que foi o último artigo que a Margarida Gomes publicou sobre o Joãozinho porque a partir daí foi uma colega sua, chamada Natália Faria, que passou a reportar sobre o tema. Mas foi uma saída em grande, terminando de forma gloriosa uma carreira de vários anos reportando para o seu jornal sobre o assunto.
Esta notícia viria a ser para mim motivo de diversão. Não apenas pela coincidência dos dois artigos no mesmo dia. Era como se uma fada de manhã lhe tivesse soprado ao ouvido: "Margarida... reporta sobre as crianças do S. João... porque a solução vem a caminho...". E à tarde, a mesma fada lhe viesse entregar o milagre. Tinha sido o Governo a fazê-lo.
Não apenas pela coincidência dos dois artigos no mesmo dia... - dizia eu - ... Mas também porque só podia ser mentira. O Orçamento do Estado tinha sido aprovado meses antes e as despesas de investimento público tinham levado um grande corte, especialmente na Saúde. O orçamento de investimento do Ministério da Saúde era apenas de 80 milhões de euros para o ano inteiro.
Mesmo este estava a ser objecto de cativações, isto é, as verbas orçamentadas não estavam a ser libertadas, o que já estava a levar a demissões e a ameaças de demissões de várias administrações hospitalares, como sucedia nos Hospitais de Gaia e do Algarve.
Ora, a verba de 21 milhões de euros representava mais de um quarto do orçamento de investimento anual do Ministério da Saúde e nem sequer estava orçamentada. Onde é que o Ministro iria buscar esse dinheiro, a meio do mês de Janeiro e com o ano orçamental já em curso?
Só se o tirasse do chapéu.
Não fosse a Margarida Gomes estar mais determinada em fazer propaganda do que em verificar factos e reportar a verdade aos seus leitores, e ela própria teria concluído que aquilo que estava a reportar só podia ser mentira.
Eu tenho, porém, de ser justo com ela. A Margarida Gomes não é uma mulher ingénua. Ela devia saber que naquela altura o Governo estava a cortar drasticamente no investimento público. Pois se ela até tinha recentemente descoberto e exposto perante o país um perigoso traficante de terrenos públicos... como não havia de saber disso?
Tinha de saber. Portanto, a conclusão a tirar era a de que ela estava conluiada com os responsáveis do Ministério da Saúde para fazer passar cá para fora esta mentira.
Meses depois, numa reunião bastante tensa - como eram então as minhas reuniões com os responsáveis da Saúde - com o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, mencionei-lhe esta mentira. Ele entregou prontamente o jogo:
-Sim... de facto ... essa saiu muito mal...
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