03 setembro 2017

Maria do Céu

Eu sou um jogger empedernido e, por isso, cuido regularmente dos pés. Quem o faz há muitos anos - na realidade, há décadas - é uma pedicura do cabeleireiro Alcino Lima, no Porto, que se chama Maria do Céu - e que eu, às vezes, em casa, trato carinhosamente por Mary of the Sky.

A Maria do Céu hoje já é avó. Mas eu conheci-a ainda com quarenta anos,  alta, loura, encorpada, imponente, que ninguém se metesse com ela. É uma mulher típica do norte que, por detrás daquele porte físico impressionante e que, às vezes, parece intimidar, tem um coração de pombinha.

Um dia, enquanto me arranjava os pés, disse-me que tinha visto na televisão que eu andava a fazer uma obra para crianças, e vinha saber mais. Expliquei-lhe que, em virtude de o Estado não ter dinheiro, as pessoas da cidade e do país se tinham juntado para fazer um hospital de crianças no S. João pois as crianças estavam há anos internadas num barracão metálico.

Pediu-me logo a conta bancária da Associação porque também queria contribuir. Disse-lhe que fosse à página da internet que a tinha lá. Respondeu-me que ia pedir à filha porque disso da internet ela não percebia nada. Dias depois, caía na conta da Associação uma transferência de vinte euros da Maria do Céu.

Recebíamos - e continuamos a receber - muitas transferências de pessoas assim, às vezes de cinco euros, pessoas cuja identidade não conhecemos. Recebemos mesmo todos os meses, uma transferência da mesma senhora em que o montante é variável mas a regularidade é constante.

Um dia, a obra já estava parada há meses e a paragem era notícia nos jornais, a Maria do Céu mencionou o assunto e perguntou-me pela obra. Expliquei-lhe que a obra estava bloqueada porque o HSJ não desimpedia o espaço. Tinha de tirar de lá o Serviço de Sangue e não o fazia. Era uma situação inexplicável porque o HSJ tinha-se comprometido a desocupar o espaço para que nós pudéssemos fazer a obra.

E acrescentei que até tinha estado recentemente com o novo presidente do Hospital a pedir-lhe para desocupar o espaço, mas que ele me respondeu que não tinha outro lugar onde colocar o Serviço de Sangue.

A Maria do Céu, que estava curvada a olhar para baixo e a trabalhar nos meus pés, parou, levantou a cabeça e perguntou-me com um ar indignado:

-Então... e eles não sabiam disso!?...

Quer dizer, a Maria do Céu, que é pedicura no cabeleireiro do senhor Alcino Lima, mecenas do Joãozinho, e que não estava dentro do assunto, rapidamente percebeu que se tratava de uma desculpa de mau-cumpridor.

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