14 agosto 2017

doação

Nunca consegui compreender a pressa que o Professor António Ferreira tinha, logo após eu ter tomado posse, para me encontrar com o Paulo Rangel, na altura director da Sociedade de Advogados Cuatrecasas, que era assessora jurídica do HSJ.

A minha prioridade era arranjar uma construtora, e em seguida visitar mecenas potenciais para arranjar o dinheiro para a obra, não encontrar-me com advogados.

Eu conhecia o Paulo Rangel desde há muitos anos, quando ele era assistente da Católica. Uma vez fui levado a uma conferência dele, arrastado por um amigo, que dizia que ele era um discípulo meu. Ele falava sobre a obra  do economista Friederich von Hayek. Gostei do que ouvi.

Depois encontrámo-nos muitas vezes, lembro-me até de uma conversa demorada no Aeroporto Sá Carneiro, eu a regressar de uma viagem, ele à espera do avião para outra. Ultimamente, ele fazia exercício físico num ginásio a trinta metros de minha casa e cruzávamo-nos frequentemente.

Acabámos por nos reunir no meu escritório, eu acompanhado de uma directora da Associação, que também é jurista, e ele do advogado Filipe Avides Moreira, que eu também já conhecia. Falámos de muitos assuntos laterais, já que eu não tinha tema para a reunião. E foi só no final que  lhe expus a arquitectura que tinha previsto para a operação.

A Associação contratava com a construtora que viesse a fazer a obra e responsabilizava-se pelo  pagamento. Ao mesmo tempo, doava a obra ao HSJ à medida que ela fosse sendo feita e até à sua conclusão final. Assim se cumpria a vocação mecenática da Associação.

O Paulo Rangel olhou para o seu colega, e voltando-se para mim a sorrir disse:

-Isso não pode ser assim...

Lembro-me de ter perguntado,

-Mas porquê, a Associação não pode doar ao HSJ a ala pediátrica?...

Ele continuou a sorrir e a dizer que não podia ser assim. Mas como também não me revelou os segredos jurídicos que via pela frente, e que eu não via, e, ainda por cima, o assunto não me preocupava nada na altura, em breve acabámos a reunião e nos despedimos cordialmente. 

Cerca de quinze meses depois, quando o contrato de empreitada com a construtora estava assinado e a obra pronta a ser iniciada, foi um documento com este teor que enviei à administração do HSJ para ser assinado:


Acto de Doação

Por este Acto, a Associação Humanitária "Um Lugar para o Joãozinho"  ("Associação") doa desde a primeira pedra ao Centro Hospitalar de São João ("CHSJ"), e este aceita,  a obra conducente à construção da nova Ala Pediátrica do CHSJ, a que se refere o contrato de empreitada em anexo, assinado nesta data, entre a Associação e a LSAS - Ala Pediátrica, ACE.
  
Porto, ... de ... de 2015
  
Pela Associação:                                                       Pelo CHSJ



Uma semana depois, através do administrador João Oliveira - o número dois do HSJ e o verdadeiro "homem da máquina" - e por intermédio da minha colaboradora, recebi um documento para a Associação assinar, em substituição do anterior, com a indicação de que a obra só poderia começar depois de o documento estar assinado. 

O documento, que tinha a chancela da Cuatrecasas, era um contrato de fornecimento de serviços ao HSJ - tipo chapa 7 - onde a palavra Contrato no título tinha sido substituída por Acordo, mas os juristas da Cuatrecasas tinham-se esquecido de a substituir também no corpo do texto. 

O HSJ é uma grande instituição com um grande poder sobre a maior parte dos seus fornecedores - um poder que os economistas chamam de monopsónio. Os contratos de fornecimento que assina com eles são quase sempre leoninos, com exigências rígidas quanto a prazos de entrega, requisitos dos produtos, indemnizações por incumprimento, ameaças de recurso a tribunais, etc. e, naturalmente, sem um único agradecimento, porque é tudo para ser pago.


Sem comentários: