29 agosto 2017

uma vaca-leiteira

Desde aquele dia depois do Natal que o menino dos meus olhos era o Continente. O próprio professor António Ferreira logo sugeriu que a cedência do terreno seria feita nos mesmo moldes da que tinha sido feita à Fundação Ronald McDonald. Mas também alertou que seria necessária autorização da tutela - o Ministério da Saúde - e também do Ministério das Finanças, e que no caso da Fundação McDonald essas autorizações tinham demorado dois anos.

Não me assustei. Eu resolveria isso em muito menos tempo.

Um mês e meio depois o projecto de supermercado estava pronto e voltámos a reunir no HSJ, o professor António Ferreira e o Dr. João Oliveira por parte do Hospital, eu por parte da Associação, o Eng. Luís Moutinho e o Eng. Diogo Mendes por parte do Continente.

Era um projecto líndissimo e que eu próprio imediatamente baptizei de Continente-Joãozinho. Ficava situado na ala poente dos terrenos do Hospital, na esquina que dá para a Circunvalação e para o IPO, numa parte dos terrenos do Hospital que não tem qualquer utilização útil, e que eu próprio viria a chamar "um matagal". Era a versão Bonjour do Continente, com um pequeno estacionamento exterior e muitos lugares de garagem subterrâneos.

Um supermercado nos terrenos do Hospital? Sim, pois se, para além da Casa McDonald, já lá existe um hotel e até um centro comercial, e também uma farmácia; e, no interior das instalações, um banco, cafeterias e muitas outras lojas. Era uma grande conveniência para os cerca de 5700 empregados do HSJ e, mais geralmente para as quase vinte mil pessoas que diariamente circulam pelos terrenos do Hospital. O HSJ dava mais um passo para se aproximar do conceito americano de Hospital-cidade.

A imagem que eu fazia do futuro supermercado era a de uma vaca-leiteira, permanentemente a espargir leite para alimentar o Joãozinho, que ficava mesmo ali a cem metros de distância, e por muitos e bons anos - cinquenta, que era o prazo por que o HSJ havia cedido o terreno à Fundação McDonald.

Nesse dia, cheguei a casa com uma notícia para dar à minha mulher, que era cliente do Continente, com cartão e tudo, situado nos Pinhais da Foz, a duzentos metros de nossa casa. A notícia era a de que em breve iríamos passar a fazer as compras da semana no Continente-Joãozinho porque uma parte do dinheiro que lá gastássemos reverteria a favor da obra.

Antecipei qual seria a reacção dela - "Vou agora fazer compras para o Hospital de S. João se tenho o Continente mesmo aqui à porta..." -, e preparei a resposta mesmo antes de entrar em casa: "Eu levo-te lá...". Há muito que eu tinha interiorizado que uma das minhas principais funções, no âmbito da economia doméstica, era a de chauffeur.

Outras reuniões iriam de seguida ter lugar no HSJ entre os estados-maiores das três instituições, estando eu ausente de uma delas que só iria tratar de questões técnicas relativas à implantação do supermercado. Mas foi naquela realizada em Fevereiro que, pela primeira vez, se falou de dinheiro, e a minha ideia inicial tinha sido a de pedir ao Continente uma percentagem sobre as vendas.

Mais adiante, viria a afastar-me desta ideia. Preferia, antes, um pagamento fixo anual porque, eliminando a incerteza, me permitiria mais facilmente fazer a intermediação da operação junto da banca. Acabaria por conseguir do Continente as duas coisas, uma contribuição fixa de 300 mil euros por ano - totalizando 15 milhões de euros em 50 anos, desprezando o factor tempo;  e uma contribuição variável sobre as vendas das campanhas que anualmente o Continente se comprometia a organizar em favor do Joãozinho.

A arquitectura jurídica da operação estava também encontrada e baseava-se na Lei do Mecenato e no precedente da Fundação Ronald McDonald. A Associação fazia mecenato ao HSJ no valor de 20 milhões de euros. Ora, a lei do mecenato prevê que o beneficiário possa dar contrapartidas em espécie ao mecenas até ao valor de 5% por ano. O terreno a ceder não tinha, nem de longe, no mercado de arrendamento o valor de um milhão de euros (5% de vinte milhões) ao ano.

Assim, o HSJ cedia a parcela de terreno à Associação pelo período de 50 anos, como contrapartida mecenática;  e esta, que não tem nem pode ter fins lucrativos, re-cedia a mesma parcela de terreno ao Continente pelo mesmo período e para os mesmos fins..


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