Se me roubarem a casa e eu me queixar à Justiça, a partir daí quem acusa o larápio não sou eu, é o Ministério Público. No processo de acusação, e eventual condenação, eu assumo a função de Assistente, isto é, de mero auxiliar do acusador, que é o Ministério Público.
Embora eu - que sou a vítima do crime - seja a pessoa mais qualificada para acusar o autor, precisamente porque sinto na pele os danos que ele me causou, e tenho conhecimento directo das circunstâncias em que o crime foi cometido, a verdade é que a lei não me confere a liberdade para ser eu a acusar.
A acusação contra os cidadãos em Portugal é um monopólio do Estado e é levada a cabo por uma burocracia com emprego garantido para a vida, que não presta contas a ninguém e que não responde por nada daquilo que faz - O Ministério Público -. Em suma, por uma corporação.
O Estado a acusar cidadãos - o que, no caso da acusação ser infundada significa persegui-los - num regime político que se diz democrático? Mas, então, não foi para proteger os cidadãos contra os abusos do Estado, que se instituiu a democracia?
Do lado da defesa passa-se algo de semelhante. Se eu fôr incriminado por alguém e constituído arguido, a partir daí estou impossibilitado de me defender. A liberdade para me defender é zero. A lei manda que eu nomeie um advogado para o fazer. O monopólio da defesa em Portugal é uma prerrogativa de uma outra corporação - a dos advogados, acreditados na respectiva Ordem.
Naturalmente, a capacidade para julgar pertence ainda a uma terceira corporação - a dos Juízes.
Existem características e privilégios que são específicos de cada umas destas três corporações, mas existe pelo menos uma característica que lhes é transversal e comum, e um privilégio também. A característica comum é a de que são todos juristas. O privilégio comum é o de que os membros destas três corporações gozam de um estatuto de imunidade, não respondendo por aquilo que fazem no exercício das suas funções.
Eu posso queixar-me do mau trabalho profissional de um médico, de uma fabricante de chocolates ou de automóveis, e até levá-los à prisão. Mas eu nunca me poderei queixar - porque a queixa não terá seguimento judicial - do mau trabalho profissional de um advogado, de um magistrado do Ministério Público ou de um juiz, mesmo que todos tenham contribuído para me meter indevidamente na prisão.
Não é necessário elaborar sobre as consequências que daqui resultam para a qualidade da Justiça no país e para os sofrimentos e abusos a que os cidadãos ficam sujeitos por esta "Justiça".
Mas não apenas isso. Todos nós, ainda jovens, formamos uma ideia do que é fazer justiça - um juiz ladeado por duas pessoas, uma que é vítima do crime, a outra que é ré, fazendo perguntas a uma e a outra até chegar à verdade, e depois proferir a sentença.
Esta ideia do que é fazer justiça ficou para sempre consagrada de forma paradigmática na sentença de Salomão. Ladeado pelas duas mulheres que reclamavam a maternidade da criança, em diálogo com uma e com a outra, fazendo prova de uma enorme sabedoria - que deve ser apanágio de todos os juízes - ele chegou primeiro à verdade. E, depois, fez justiça.
Mas como é que Salomão poderia hoje fazer justiça em Portugal se, em lugar de estar ladeado pelas mulheres, ele estaria necessariamente e por força da lei ladeado por um advogado, de um lado, e por um magistrado do Ministério Público, do outro, nenhum deles sendo a verdadeira mãe da criança e a nenhum deles doendo - como só pode doer a uma mãe - ver o seu filho ser cortado ao meio?
Sim, como poderia Salomão fazer hoje justiça em Portugal se, ao longo dos anos do Processo e das múltiplas sessões e diligências, as duas mulheres, sentindo a inutilidade da sua presença, há muito não compareciam - e se, entretanto, a criança já se tinha tornado um adolescente com barbas?
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