POLITIZAÇÃO DA VIDA QUOTIDIANA
A democracia liberal politiza os cidadãos
quando os chama a escolher entre líderes políticos, partidos políticos, e
programas partidários.
Esta politização, que não tem a mesma dimensão
nos regimes autocráticos, tem, sem dúvida, vertentes muito positivas. Quando
invade, porém, todos os aspetos da vida quotidiana, torna-se perniciosa. Cria
crispação e até ódio entre diferentes grupos sociais e simples cidadãos, que
passam a ser olhados como inimigos; alguém que constitui uma ameaça existencial
ao nosso modo de vida e que, em última instância, poderá ser necessário
eliminar.
Basta refletir sobre o Brexit, no RU, a
eleição de Donald Trump, nos EUA, os diferentes populismos que grassam na
Europa, e até na retórica inflamada que, entre nós, procurou denegrir o governo
de Pedro Passos Coelho, para perceber que as emoções têm falado mais alto do
que a razão e que há uma polarização que era inédita na vida política, pelos
menos até há bem pouco tempo.
Alguns analistas têm apontado as redes sociais
como responsáveis por esta crispação política, na medida em que permitem a
qualquer um destilar vitríolo sobre pessoas que não conhecem e assuntos que
nunca estudaram. E realmente assim é, mas todo este fel, não me parece ser a
causa, mas sim a consequência da politização da vida quotidiana.
O mesmo fenómeno, aliás, permeou a maior parte
dos chamados MSM (main stream media) que albergam, atualmente, “assassinos de
carácter” profissionais, devotados a difamar os adversários políticos, que tratam,
na realidade, como inimigos. Dedicam-se, por exemplo, a fabricar notícias
baseadas em alegadas denúncias anónimas, as chamadas Fake News, com o propósito
claro de influenciar a opinião pública a favor das sua causas.
A exibição de uma “cabeça decapitada” do
presidente Donald Trump, por uma colaboradora da CNN, é talvez o ponto mais
baixo a que se pode chegar. Influenciando depois todos os que veem estas
imagens quando estas se tornam virais na internet. O atentado perpetrado no
estado da Virgínia, a 14/06/2017, contra o Partido Republicano, parece fruto
deste clima político.
Carl Schmitt, em 1932, já tinha alertado para
o perigo da “politização total” da sociedade, como uma espécie de estadio final
das democracias liberais, e proposto uma salvaguarda autoritária, na figura de
um presidente que pudesse decidir pelo coletivo quando este estivesse, por
assim dizer, democraticamente bloqueado por visões irreconciliáveis.
Não tendo simpatia por soluções autocráticas,
não deixo, porém, de admirar a quase profética análise de Carl Schmitt,
proferida ainda antes da segunda guerra mundial. Em Portugal, António Salazar
foi essa figura autocrática, chamada a apaziguar um País já então dilacerado
por um excesso de politização, embora de natureza radicalmente diferente da
atual.
Estejam ou não previstas entidades
autocráticas tutelares para resolver graves crises políticas, a verdade é que
elas aparecem quando é necessário, para repor a segurança e a ordem.
Alertar para os aspetos perniciosos da politização
da vida quotidiana, é, portanto, fazer a profilaxia de soluções de último
recurso que acarretam sempre um custo elevado e um desfecho incerto.
A vida quotidiana está politizada porque o
Estado invadiu todas as esferas da nossa atividade. O Estado está presente na
fecundação, na gravidez, no parto, nos primeiros anos de vida, na escola pré-primária
e primária, no liceu e nas universidades, na regulamentação da atividade
profissional, nas empresas, nas relações laborais, na saúde e na doença, nos relacionamentos
pessoais, e até na morte.
Em tudo o que se envolve, o Estado favorece os
“amigos” e prejudica os “inimigos”, alimentando grupos que se digladiam e que
passam a constituir uma ameaça mútua. Os velhos reclamam políticas que
prejudicam os jovens, os empregados exigem medidas que prejudicam os
desempregados, as empresas procuram rendas à custa dos contribuintes, a banca
quer garantias dos cofres do Estado, enfim... todos procuram benesses num jogo
de soma zero que só pode alimentar ódios.
O outro deixa de ser o irmão com quem podemos
colaborar para o Bem Comum para passar a ser uma ameaça existencial. A
confiança, esse elemento fundamental do desenvolvimento, é corrompida pela
politização da vida quotidiana. Paradoxalmente, a falta de confiança clama por
mais intervenção estatal e regulamentação que, em última análise vai destruir
ainda mais a confiança restante; é um ciclo perverso e fatal para a sociedade.
É fácil percebermos quando a politização
democrática ultrapassa os limites do razoável, basta perguntarmo-nos se numa
situação concreta, em análise, perspetivamos os nossos concidadãos em termos de
amigo/inimigo.
Os conflitos entre os encarregados de educação
e os professores são frequentes e muitas vezes envolvem violência, a relação
médico-doente deteriorou-se ao ponto de ser necessária a presença da polícia em
muitas circunstâncias. E até os próprios agentes da autoridade se sentem
inseguros no exercício das suas funções.
O cidadão que começou a trabalhar para a Uber
é inimigo dos taxistas, o inquilino é inimigo do proprietário, e o trabalhador,
claro está, é inimigo do patrão.
Questões do foro íntimo, como o aborto, são
administradas pelo Estado que disponibiliza interrupções voluntárias da
gravidez a partir dos 16 anos de idade, sem autorização nem conhecimento dos
pais. Não será de antecipar um desagrado veemente, por parte dos respetivos encarregados
de educação, num caso destes?
Por fim, uma referência à liberdade de
expressão e à chamada ditadura do politicamente correto. Qualquer um pode ser
apelidado de racista, xenófobo, misógino, sexista, ou homófobo, e atacado
verbal e fisicamente pelo estigma destas acusações. A sociedade pulverizou-se em
grupos que se digladiam porque se consideram inimigos. Porquê?
Porque se politizou a vida quotidiana!
Será possível reverter esta situação?
Penso que sim, se percebermos o ponto de
rutura a que se chegou e a ameaça que essa rutura implica para a democracia
liberal. Politizar tudo não enobrece a política, pelo contrário. Cria ruído,
uma cacofonia que irrita e desorienta.
Recuperar o espaço de privacidade pessoal,
familiar, e social, é, quanto a mim o caminho a seguir e a via para deixarmos
de olhar para os outros na perspetiva política de amigo/inimigo e passar a
vê-los com irmãos.
Todos “iguais aos olhos de Deus”, com um
direito inalienável à busca da felicidade, sem que essa felicidade seja
conquistada à custa da infelicidade alheia. A vida não tem de ser um jogo de
soma zero.
2 comentários:
Análise profundamente errada derivada de uma visão extremamente politizada das coisas.
Aquilo que critica é apenas e só vermos na política o que acontece em todos os lados. O fenómeno é, pois, de sentido exactamente oposto.
Bom texto
Enviar um comentário