28 novembro 2014

Discrição


Discrição
Por: Pedro Arroja

 Quando, na semana passada, e perante o estado em que se encontra a Justiça em Portugal, me propus enunciar os pilares em que assenta um verdadeiro sistema de Justiça – começando pela Verdade -, eu estava longe de imaginar que iria hoje prosseguir o argumento já com um ex-primeiro-ministro na cadeia.

A Justiça é tradicionalmente representada por uma figura de mulher - a escultura que encontramos geralmente à porta dos tribunais  representa uma mulher de olhos vendados e segurando uma balança nas mãos. É a Deusa Iustitia dos romanos, herdeira da Deusa Diké dos gregos. E a razão é que os atributos principais da Justiça, sendo atributos humanos que se encontram quer nos homens quer nas mulheres, são mais intensos ou predominantes nas mulheres do que nos homens.

A Verdade é um deles. Quem queira saber a Verdade acerca de certas questões essenciais da sua existência, o melhor que tem a fazer é perguntar a uma mulher. Assim, por exemplo, a questão: “Quem é o meu pai?”. Existe apenas uma pessoa no mundo que me pode responder a esta questão com verdade absoluta – e essa pessoa é uma mulher. Visto de outro ângulo, os grandes mentirosos, trapaceiros, vigaristas, aldrabões são normalmente homens, não mulheres.

O segundo pilar da Justiça que hoje pretendo tratar é o da Discrição. A verdadeira Justiça é discreta, desenrola-se e processa-se longe dos olhos do público, e só na fase final se torna pública.

A Discrição é outro valor predominantemente feminino. São os homens que são mais propensos a exprimirem-se de forma pública – na realidade, a esmagadora maioria das figuras públicas são homens. Pelo contrário, as mulheres  tendem a exprimir-se predominantemente de forma privada ou discreta, através de conversas e gestos privados, e não de discursos e manifestações públicas.

O oposto da Discrição, na realidade o extremo oposto, é o escândalo, precisamente aquilo que o nosso sistema de Justiça vem produzindo agora à taxa de um por semana – a semana passada com o caso dos vistos Gold, agora com o caso José Sócrates.

São várias as razões que convergem para tornar a discrição um pilar essencial da Justiça. A primeira é evitar o julgamento popular. O povo não é bom a julgar, e existem vários julgamentos populares (ou democráticos) famosos com resultados catastróficos. Um deles é o julgamento de Sócrates – não o português, mas o grego. O outro é o da condenação de Cristo.

Num sistema de Justiça verdadeiro, o caso só se torna público na fase final do julgamento, nunca nas fases de instrução e menos ainda de investigação. Num tal sistema de Justiça, o réu que vai a tribunal pode ter a certeza que vai ser condenado, porque as provas acumuladas contra ele são irrefutáveis. A única incerteza consiste em saber se a pena é mais ou menos pesada, consoante existam circunstâncias agravantes ou atenuantes.

Antes disso, não há provas. Existem indícios e  os indícios podem ser indicadores da verdade  ou não. Trazer a público um caso judicial baseado em indícios, é lançar o opróbrio sobre a pessoa visada do qual ela nunca mais recuperará, mesmo quando mais tarde ela venha a ser considerada inocente.

Acresce que a publicidade do caso vem normalmente só de um lado – o da acusação – sem que o arguido se possa defender porque entretanto foi sujeito a medidas de coacção, como a prisão preventiva. Se o julgamento público, só por si, já seria mau, o julgamento público em que o público só ouve de um lado, mas não do outro, é horrível e uma verdadeiro crime.

Daí a instituição do segredo de justiça – uma instituição que visa proteger o valor da Discrição que é inerente à verdadeira Justiça. Daí também que a violação do segredo de justiça seja um crime grave, dando lugar a prisão.

Ora, o único crime provado no caso dos vistos Gold e, mais ainda, no caso José Sócrates, é o crime de violação do segredo de Justiça, cometido muito provavelmente pelos magistrados do Ministério Público. Este crime, obviamente, nunca será julgado, porque os magistrados do Ministério Público vivem acima da lei.

Quanto ao resto não existe para já Justiça. Existe o oposto da Justiça. Existe escândalo e existe perseguição pessoal e política.

(in Vida Económica, Sexta-feira, 28 de Novembro de 2014)

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