04 novembro 2013

um acto de rendição


Eu gostaria de voltar ao último post do Joaquim, não para alimentar um debate sobre Deus, mas para prestar alguns esclarecimentos.

O primeiro é para dizer que a aceitação de Deus não pode nunca resultar de um debate. A aceitação de Deus é um acto de liberdade, e não de um xeque-mate argumentativo. A partir de certo ponto, argumentar em favor de Deus perante um incréu é contraproducente, ainda por cima em público. Portanto, não seria nunca eu, mesmo que fosse capaz, que daria o xeque-mate ao Joaquim nesta matéria.

O segundo é para esclarecer um ponto importante. A certa altura, na caixa de comentários do post do Joaquim, dá a ideia que a diferença entre nós se resume a uma diferença de palavras, e houve pelo menos um comentador que assim entendeu. O Joaquim chama Acaso àquilo que eu chamo Deus, portanto Deus e o Acaso são a mesma coisa.

Ora, isto é radicalmente enganador. O Acaso não é Deus nem Deus é o Acaso e, sob o ponto de vista da Razão, são mesmo radicalmente opostos - é o reino da racionalidade versus o reino da irracionalidade. Esta é a questão levantada por Joseph Ratzinger citado num dos meus posts anteriores. Se o mundo provém do Acaso e, portanto, da irracionalidade, como explicar a racionalidade que descobrimos em nós próprios  e na estruturação da natureza?

A terceira observação é a que me custa mais fazer, porque lá vou ter de invocar um filósofo que causa sempre dissensões neste blogue - por isso ele tinha justamente a alcunha de "o destruidor": não há como ele para destruir comunidades -, mas só o faço porque ele é, de facto, o pai, o filósofo-paradigmático, do racionalismo que o Joaquim exprime no seu post, e a que o próprio Joseph Ratzinger faz referência - o racionalismo moderno.

A concepção que o Joaquim tem de Deus é idêntica à do Kant, é uma concepção instrumental de Deus que releva da razão prática. O Kant concluiu que nós não podemos viver sem uma moral. Concluiu também que não existe moral sem Deus. Então, para que nós possamos viver precisamos de acreditar em Deus. É como um sistema de equações em que existe uma variável mais que o número de equações - um sistema indeterminado. Para que o sistema se torne possível e determinado, eu tenho de juntar mais uma equação - e uma equação que seja independente de todas as outras. E foi isso que o Kant fez: "Temos de acreditar em Deus" (caso contrário isto não funciona). Deus é portanto um expediente de que Kant lança mão para fechar o seu sistema intelectual e lhe dar coerência interna.

O mesmo se passa com o Joaquim. Ele tem um esquema de pensamento. Às tantas, precisa fechá-lo, dar-lhe coerência interna, e para isso precisa de responder à questão "Porquê algo? Porque não o vazio?". E lança a mão a Deus, tal como  Kant antes havia lançado, para lhe resolver o problema, exactamente da mesma maneira que eu lanço a mão ao saleiro quando a comida está ensossa.

Deus torna-se um expediente, um instrumento, um recurso para dar coerência à razão humana. Este Deus, para dizer o mínimo, acabará por se tornar um impertinente. Um homem recorre a ele quando a sua razão está em apuros. Ele torna-se o espelho das limitações e da falibilidade da razão humana, e o seu símbolo.

Não surpreende que a seguir ao Kant, tenha aparecido outro filósofo na Alemanha que, depois de criar uma moralidade "racional" - a moralidade do poder -, tenha dado um tiro em Deus. Com Deus morto, não existe mais nada nem  ninguém constantemente a lembrar o homem das limitações da sua própria razão. A razão humana, finalmente, impera, e o homem também - lá no império que antes era de Deus.

Aquilo que o Kant e o Joaquim fazem não é chegar a Deus pela razão. É encontrar uma razão para deitar a mão a Deus. O Kant tem Deus na mão por uma certa razão, o Joaquim tem Deus na mão por outra razão.

Mas chegar verdadeiramente a Deus não é deitar a mão a Deus e menos ainda ter Deus na mão. É exactamente o contrário, é aceitar que Deus nos deite a mão e que Deus nos tenha na mão. É um acto de rendição: "Pronto, rendo-me. Perante tanta evidência e ao longo de tantos anos, não tenho mais por onde fugir, por onde argumentar ou por onde negar. Rendo-me". É um acto de rendição livre e, geralmente, íntimo.

No fim, não somos nós que temos a Verdade. É a Verdade que nos tem a nós.

8 comentários:

Anónimo disse...

Caro PA,

Obrigado pelo post.
ABÇ

Joaquim

Ricciardi disse...

"Então, para que nós possamos viver precisamos de acreditar em Deus."
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Pois, mas os animais e as plantas vivem e é bem provavel que nao tenham qualquer consciencia de Deus.
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Deus nao existe pelo homem e por causa do homem.
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Nao é um Deus pessoal, que temos no bolso de cada um, e que é interpretado consoante as experiencias individuais.
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Ha uma difrença entre o Deus das religioes e o Deus criador. O primeiro vai mudando pela historia adentro conforme a cultura dos povos e os conhecimentos da humanidade. Já foi Rá, já foi Zeus, El, Jeova. Já foi Mazda, Krishna. Já foi chefe de comandita de varios deuses. É Alá, é Deus. É uma trindade. É filho, é pai, é espirito santo.
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Amanha poderá ser outra coisa qualquer.
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Mas o Criador, esse, nao tem que ver com religioes. Apenas se intui. Nao se prova. Intui-se na existencia da materia. Toda ela. O universo, os planetas, as nubelosas, os buracos negros, os animais, as plantas, o homem.
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Se ha pão é provavel que exista um Padeiro. A alternativa é existir um pão que se auto-criou.
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Rb

Ricciardi disse...

Terá sido obra do acaso?
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Acho que nao. Existe uma clara definicao das leis da física no universo.
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Ora, se existem leis uniformes na natureza que até nos permitem por avioes no ar a contar com a regularidade daquelas leis, electricidade nos fios, medir quedas dos corpos com precisao milimétrica, a gravidade. Se existem todas essas leis que o homem descobriu e demonstrou existirem, é sinal de que existe um proposito, uma intenção em faze-las.
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Rb

A. disse...

PA escreveu:
É um acto de rendição: "Pronto, rendo-me. Perante tanta evidência e ao longo de tantos anos, não tenho mais por onde fugir, por onde argumentar ou por onde negar. Rendo-me". No fim, não somos nós que temos a Verdade. É a Verdade que nos tem a nós.

Totalmente de acordo. É precisamente isso que acontece. Rendição total... seguida de encantamento (permanente?).

A determinado momento, os factos são tantos e tão poderosos que passaria a ser pura e simplesmente irracional negar que Algo existe.

A.

zazie disse...

Deus há só um.

Anónimo disse...

Não alimentemos debates... há coisas que são sagradas e não podem estar dependentes de debates... (é judeu, dupla precaução nele.) -- JRF

Vivendi disse...

O silêncio de Deus

"O declínio real e morte de uma nação vem da sua dissolução interna. Esta crise interna geralmente é causada por dois factores:

- Por um lado, pela deserção, pela preguiça e complacência de suas classes cultas, dos sábios da cidade quando essas classes adormecem sobre a sua própria ciência, ou o seu próprio significado, quando não exercem a autoridade com sentido, então a ordem, as crenças, a moral, a justiça e as leis ficam indefesos, a cidade não progride, antes se fossiliza e toda a ordem venerável se torna hipócrita.

- Por outro lado, é neste momento que aparece uma outra classe de homens: os revolucionários (os malabaristas de ideias), que são aqueles que não têm nada a perder, aqueles que não amam as leis nem as crenças, os que não respeitam os fundamentos da ordem ou os princípios do bem e da verdade (...).

Se não encontrarem opositores, homens de fé, de verdadeiro saber, acabam por vencer porque os seus argumentos seduzem e atraem as paixões dos outros e parecem logicamente válidos. A cidade então morre por dissolução interna ou por invasão inimiga, mas apenas quando o seu espírito interior desaparecer."

Rafael Gambra Ciudad in "O Silêncio de Deus

MCO disse...

Recomendo vivamente a letra (e música) do Leonard Cohen: "You have loved enough", completamente na linha deste post do PA.

MCO