18 março 2009

desiste com facilidade


Dentre os defeitos que têm sido apontados ao homem português, um dos mais reconhecidos é a sua falta de persistência ou de tenacidade. Pascoaes estava enganado quando sugeriu que este defeito era a antítese do génio português da aventura, e Salazar que também diagnosticou este defeito aos portugueses (provavelmente seguindo Pascoaes) parece nunca ter sido capaz de descortinar a sua causa.

A explicação da falta de persistência que é típica do português está descrita neste post e, em particular, no título. O português típico é de uma insegurança íntima radical. Ele nunca está certo das suas verdades mais íntimas, ele nunca tem a certeza de que aquilo que pensa e que faz é aquilo que deveria pensar e fazer. Numa palavra, ele não tem confiança no seu próprio julgamento, ele duvida de si próprio permanentemente. Por isso, quando entregue a si próprio, ele nunca leva um projecto do princípio ao fim. O português desiste com facilidade, e desvia de caminho com mais facilidade ainda.

Não surpreende que assim seja. O homem português chega às suas verdades mais íntimas por oposição às de todos os outros, porque ele não acredita no julgamento dos outros. As verdades íntimas do português são só dele, e exclusivas dele e são elas que definem a sua personalidade única. Por isso, uma dúvida recorrente não pode deixar de lhe assaltar o espírito: "Será que só eu é que tenho a verdade, e os outros estão todos errados?". Esta insegurança é a fonte da sua instabilidade e da sua errância. Ninguém pode deixar um projecto entregue a um homem do povo português, e partir. No regresso, ele enumera mil razões para não o ter completado.

A falta de persistência do homem português, a sua permanente incapacidade para levar as coisas até ao fim, constitui um dos contrastes mais marcantes com o homem de elite da sua cultura. Na realidade, uma das características dominantes do homem de elite português, e que o distingue marcadamente do povo, é a sua persistência inabalável, a sua tenacidade e a sua perseverança para prosseguir no seu caminho.

Na cultura portuguesa, o homem de elite distingue-se do povo pela sua capacidade de julgamento e, em particular, pela sua capacidade para julgar onde está a verdade, uma capacidade que falta por completo ao homem do povo. Por isso, a insegurança do homem do povo encontra exactamente o seu reverso na segurança impressionante e na determinação com que o homem de elite proclama a sua verdade e vive a sua vida. A diferença para este comportamento é a de que o homem do povo só adquire certezas em comunhão com os outros, ao passo que o homem de elite adquire-as sozinho.

O homem do povo nunca toma a iniciativa de revelar as suas verdades íntimas em público, aquelas verdades sobre as quais assenta a sua vida e sem as quais ele não conseguiria viver. Ele próprio desconfia delas e, por isso, tem medo que elas sejam abaladas pela crítica dos outros ou pelo escárnio. Ele precisa dos outros para confirmar as suas verdades e, por isso, só exprime em público aquelas verdades que vê os outros também exprimirem. As únicas certezas que ele tem são aquelas que exprime em conjunto com os outros. Mais nenhumas. Daqui resulta a intolerância típica que o homem português exibe em público e que dá à sociedade portuguesa uma reconhecida imagem de intolerância quando observada de fora.

De facto, um dos aspectos que imediatamente repugna ao visitante que chega a Portugal e abre a televisão, escuta um debate ou ouve uma conversa entre amigos, é intolerância radical dos portugueses, e que é uma manifestação da sua enorme falta de julgamento. Os portugueses só têm certezas em público, e só em público têm certezas, não porque as tenham confirmado por si próprios, mas porque as confirmaram nos outros. Eles pensam e agem assim porque toda a gente pensa e age assim. Ponto final. Naquilo onde não há certezas públicas, a dúvida radical e íntima permanece no homem do povo português. E também a sua insegurança. (1)

O homem de elite é diferente. Ele possui capacidade de julgamento e sabe chegar à verdade por si próprio, não precisando de ninguém para o fazer. Quando chega à verdade, ele exprime-a em público com serenidade e determinação. Pouco lhe importa a detracção dos outros, dos homens e das mulheres do povo, a chacota, a deprecação ou até a ameaça e o insulto. Ele proclama a sua verdade de forma impassível e persistente, determinada e alheia a todos os impropérios (2). Este homem não hesita, este homem não desiste, este homem não vacila. Sabendo o que custa proclamar a verdade nesta cultura, ele não deseja aos outros aquilo que os outros lhe fazem a ele, que é procurarem silenciá-lo por todos os meios possíveis e imaginários. Por isso, o homem de elite da tradição católica é um homem profundamente tolerante (3).

(1) A blogosfera produz a este respeito experiências laboratoriais curiosas. Os bloggers e comentadores mais agressivos, que são também os mais intolerantes, são pessoas radicalmente inseguras. Elas gostavam de ter verdades, mas não as possuem. Daí o seu ressentimento e a intolerância e a violência com que se exprimem em público, normalmente com um grupo atrás a acompanhá-las. As verdades delas são frágeis como as ervas do campo. Arrancam-se facilmente com as mãos.
(2) O exemplo do homem de elite da tradição católica no seu melhor aqui. Até os jornalistas do Público que, seguindo a tradição portuguesa, hão-de confirmar as suas verdades em grupo à mesa do café, decidiram hoje fazer primeira página do seu jornal depreciando a mensagem do Papa: "Sida: Papa condena preservativos no continente mais infectado". Aquilo que nunca lhes ocorreu foi tentar demonstrar, se conseguirem, a falsidade da mensagem do Papa a este respeito, que é a seguinte: a única solução absolutamente eficaz para lidar com o problema da sida é a abstinência sexual (em relação, naturalmente, a pessoas infectadas ou suspeitas de infecção)
(3) Resulta claro que a imagem do homem de elite que tracei aqui tem o correspondente bíblico na imagem de Cristo.

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