16 março 2009

as cozinheiras


Eu gostaria neste post de interromper os temas da justiça e da educação que tenho vindo a tratar, para me ocupar de um outro tema. Tenho vindo a afirmar que não é possível o diálogo e a convivência duradoura entre pessoas pertencentes a culturas diferentes. A razão é que as ideias dominantes de uma e de outra são diferentes e as suas respectivas verdades inconciliáveis.

Proponho-me neste post analisar aquilo que acontece a um homem de elite português que decida intrometer-se entre mulheres do povo; e, reciprocamente, analisar também aquilo que acontece a uma mulher do povo que decida intrometer-se entre homens de elite. Para simplificar, considero o seguinte cenário. Todas as semanas, em dia marcado, vinte homens de elite reunem-se na mesma casa para discutirem certos assuntos. Entre eles, está uma mulher do povo. O almoço é preparado todas as semanas por uma equipa de seis cozinheiras, típicas mulheres do povo, que começam a trabalhar às dez e saem às quatro. Quando as reuniões são interrompidas para o intervalo, um dos homens de elite gosta de ir à cozinha ver a comida que as mulheres estão a fazer.

Começo pela reunião. Para chegar à verdade, na típica tradição católica, começa-se por inventariar os factos que dizem respeito à situação, a fim de seleccionar os factos essencias. Nesta fase inicial de inventariação dos factos, a mulher do povo que está entre os homens de elite começa por ser apreciada e é até objecto de admiração. A sabedoria da mulher portuguesa, que é feita de factos, confere-lhe uma enorme capacidade para citar factos e até os descrever ao mais ínfimo detalhe.

Nesse primeiro dia, na cozinha, é também um sentimento de agradável surpresa e admiração que prevalece entre as cozinheiras quando são surpreendidas pela visita do homem de elite, vestido com um fato e uma camisa impecáveis, que se interessou pelos seus cozinhados, observou o refogado, admirou o aspecto da carne assada e a delicadeza das confitures.

À terceira reunião, os homens de elite já estão na fase de selecção dos factos essenciais, enquanto a mulher do povo continua a citar factos sem critério. Nesse dia, na cozinha, quando o homem de elite lá entrou, uma cozinheira por um triz que não lhe lhe deixou cair a sopa no fato, e outra só por um milagre não lhe sujou a camisa com o molho do pudim.

Duas semanas mais tarde, os homens de elite estão já definitivamente envolvidos na segunda e última fase da procura da verdade, envolvendo argumento racional asbtracto. As dificuldades com a presença da mulher do povo passam a ser notórias. Eles trocam argumentos racionais, e ela só cita factos, ainda por cima sem critério, reflectindo a sua radical falta de julgamento. Eles falam em abstracto e isso passa-lhe por cima, dado o seu apego ao concreto e a sua radical incapacidade de abstracção. Porém, é a sua infinita propensão para estar sempre a falar, a sua incapacidade radical para se calar - reflexo da sua falta de julgamento radical - que torna as coisas mais difíceis. Ela não só não junta nada à discussão, como o facto de estar sempre a falar constitui um permanente ruido de fundo que dificulta o diálogo entre os homens.

Um empecilho foi aquilo em que se tinha tornado por essa altura o homem de elite que continuava a visitar a cozinha. À sua entrada, e perante a sua curiosidade de espreitar em todos os tachos e panelas, aproximar-se do fogão, e fazer perguntas sobre cada prato que estava a ser confeccionado, as cozinheiras paravam agora tudo, com receio de o queimarem ou de lhe sujarem o fato. As cozinheiras tinham agora um problema a resolver, como afastar o homem de elite da cozinha, um problema semelhante àquele que os homens de elite tinham para resolver em relação à mulher do povo que estava entre eles.
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A maior proximidade das mulheres em relação à verdade, na cultura católica, leva-as a ser mais explícitas e directas. E da próxima vez que o homem de elite entrou na cozinha para espreitar os cozinhados, uma das cozinheiras, com a panela da sopa fumegante nas mãos e postada em frente dele, disse-lhe assim: "O senhor doutor, por favor fuja daqui, porque a gente ainda o queima ou lhe estraga o fato, e a sua mulher depois vai ralhar consigo". De facto, se acontecesse um acidente e ele aparecesse nesse dia em casa com o fato estragado pelo molho do refogado, a primeira pergunta que a mulher lhe iria fazer seria: "O que é que tu andavas lá a fazer na cozinha, sozinho no meio das mulheres?". Foi remédio santo. O homem de elite nunca mais apareceu na cozinha. As cozinheiras tinham-lhe tocado no ponto em que mais lhe doía ("Ainda vais ter que aturar a tua própria mulher!...").

E os homens de elite, como vão eles resolver a questão com a mulher do povo que continua no meio deles, e se tornou um empecilho? Não da mesma maneira, porque um homem de elite nunca confronta uma mulher. Como são verdadeiros homens de elite eles vão, pelo contrário, tocar-lhe no ponto onde lhe dói mais: Não lhe ligar. Ela continua a falar, mas agora já ninguém lhe liga. Quando ela acaba de falar - e ela agora passa a ser interrompida ou simplesmente ignorada -, os homens continuam a conversa no ponto onde a tinham deixado, sem ligar minimamente ao que ela disse. A mulher do povo em Portugal não suporta ser ignorada, sobretudo pelos homens. Considera isso uma ofensa. Passadas umas semanas, ela deixa de comparecer às reuniões, não sem antes lhes ter chamado alguns nomes e dirigido alguns insultos.

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