17 novembro 2008

O Brilho dos Arrojas


Eduardo Prado Coelho tinha regressado a Portugal após vários anos desempenhando o cargo de adido cultural da embaixada portuguesa em Paris. À chegada, escreveu um extenso artigo sobre mim, dividido em duas partes, ambas de página inteira, no Público. Embora o título se refira ao meu nome no plural, apenas eu sou visado. A minha reacção na altura foi a seguinte: que país é esse que tem um intelectual deste calibre como seu adido cultural em Paris? Transcrevo a seguir uma porção substancial da segunda parte do artigo (a primeira fora publicada a 21 de Dezembro de 1996):


O Brilho dos Arrojas, 2ª Parte

Por: Eduardo Prado Coelho
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1. O domingo passado trouxe-me grandes alegrias...
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2. A segunda alegria encontrei-a no "Diário de Noticias". Mas isso exige uma conversa mais alargada. Tudo começou assim: tendo o ministro da Cultura feito uma portaria sobre apoios ao cinema e situações irregulares suscitadas no tempo da governação do PSD ... tive a grande ventura de ler um depoimento de um senhor Pedro Arroja, cuja existência à face da terra desconhecia, do que humildemente me penitencio. Isso permitiu-me encontrar para a crónica anterior um daqueles títulos com sabor a melodrama do século XIX, entre a tragédia dos Avelares e o brilho dos Arrojas, o que já foi um enorme prazer ... Depois... a gente afeiçoa-se aos nomes que cita e uma mórbida curiosidade levou-me a ler mais textos do senhor Pedro Arroja. Disseram-me que esta benção dos céus descia sobre nós ao domingo, e para isso me preparei...
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Imagino que os directores do "Diário de Notícias" solicitaram para as crónicas de domingo um "bom economista". Pedro Arroja, excelente humorista, ouviu mal e avançou. Mas há males que vêm por bem. Ganhou-se um excelente humorista. E a crónica intitulada "A cultura da pobreza" é um modelo do género, uma peça verdadeiramente hilariante. Em Portugal, não vejo senão Herman José que lhe esteja à altura.

3. Começa assim: estamos no Natal, costuma-se falar dos pobres, também vou falar dos pobres. Mas com uma diferença: o que eu vou dizer pretende contribuir "para libertar os pobres da situação de pobreza em que se encontram". Vasto programa, como dizia o outro. O outro neste caso seria o General De Gaulle...

Logo a seguir vem "o dinheiro dos contribuintes". Assim. Existem comissões oficiais para se ocuparem da pobreza. E que fazem elas? "Limitam-se a reclamar dinheiro dos contribuintes para ser distribuido pelos pobres". É assim que os contribuintes, seres ricos porque contribuem, são espoliados por comissões que ainda por cima são oficiais. Reparem na subtileza deste "limitam-se a". Que poderiam fazer mais?, pergunta-se. A resposta é simples: poderiam fazer como Pedro Arroja e escrever artigos que "contribuam para libertar os pobres da situação em que se encontram". Mas nem isso fazem, os poltrões. "Limitam-se a" pedir dinheiro. É por isso que Pedro Arroja - e não posso senão aplaudi-lo - não dá o dinheiro que ganha com este artigo que escreve nem para qualquer comissão oficial de luta contra a pobreza, nem mesmo para a Igreja (que "trata os pobres como vítimas")

4. Vem a seguir o momento marxista de Pedro Arroja. Marxista algo primário. Suspeito mesmo que, irrecuperavelmente primário. Arroja consegue ser primário mesmo quando é marxista. E que nos diz? Que estas comissões têm duas características. Primeira, que não têm pobres entre os seus membros. Segundo, "nas estatísticas da pobreza que regularmente divulgam o número de pobres aumenta sempre". Não sendo provável, madraços como são, que sejam elas próprias a fazer as estatísticas, verifica-se que elas viciam as estatísticas que divulgam e certamente (que trabalheira, meu Deus!) impedem que os verdadeiros números sejam divulgados. E fazem isto, porquê? Um psicologismo vulgar diria que se trata de pessoas sem escrúpulos, capazes das maiores vilanias. Mas é aqui que entra o marxismo primário: elas fazem isso para defender os seus próprios interesses. Assim: "no dia em que o número de pobres começasse a diminuir e, no limite, fosse reduzido a zero, os comissários perderiam o emprego, as honrarias, a exposição pública que os vencimentos que a sua situação lhes confere". Percebe-se, agora, a sugestão implícita de Pedro Arroja: devia-se nomear pobres para estas comissões, e não pessoas "que parecem razoavelmente instaladas na vida" (os ricos são demasiado honestos para entrarem nestas coisas). Ao menos nestas comissões estes pobres deixavam definitivamente de ser pobres.

5. Vem a seguir a parte mais divertida. Não precisa de comentários: "A pobreza é sobretudo uma cultura - uma atitude perante a vida, um estado de espírito -, possuindo elementos que podem ser perfeitamente identificados. Uma pessoa que nasça num meio modesto e cuja atitude perante a vida seja caracterizada por estes elementospossui todas as probabilidades de permanecer pobre para sempre. Pelo contrário, uma pessoa que nasça num meiopobre, mas de cuja atitude perante a vida estejam ausentes estes elementos, tem grande probabilidade de sair da pobreza e até se tornar rica".

Tendo em conta estes elementos, Pedro Arroja termina com estes admiráveis conselhos (é aqui que o artigo se torna hilariante):
1) o pobre, se quer sair da pobreza, deve "pensar a prazo e desenvolver as faculdades do pensamento abstracto que permitem definir um plano de vida e identificar comportamentos adequados para atingir os objectivos propostos" (hão-de concordar que esta do "pensamento abstracto" é verdadeiramente deliciosa;
2) deve "ganhar o sentido do futuro - o sentido de que a vida não termina hoje, mas que existe um amanhã" (este bom conselho não abrange, como é óbvio, os que se suicidam);
3) "desenvolver o sentido de autoconfiança, que lhe permita moldar a vida" (versão mais concreta: "se até um cretino pode escrever artigos nos jornais, então eu..."
4) "gostar mais de si próprio e exercitar-se no seu aperfeiçoamento pessoal",
5) "desenvolver a capacidade para se fixar num projecto de vida" (devemos reconhecer que Arroja começa a repetir-se, mas uma pessoa não pode ser brilhante em todas as alíneas)
6) "adquirir gosto por aquilo que faz, especialmente pelo seu trabalho" (este conselho não se aplica obviamente aos desempregados)
7) "procurar elevar-se acima das gratificações físicas imediatas" (ou por outras palavras: não ler apenas o Kamasutra, mas também os economistas neoliberais);
8) "precaver-se hoje contra as incertezas que o futuro traz consigo" (ou por outras palavras: conhecem a história da cigarra e da formiguinha...?);
Entre isto e a astrologia não há diferença, trata-se de uma cultura do optimismo.

Pedro Arroja - o Che Guevara (peço desculpa pela ofensa à memória do Che) do nosso pensamento neoliberal. Garanto-lhes que não perco a próxima crónica.
(Público, 4 de Janeiro de 1997, p. 12, bolds meus)

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