O episódio do trinta e um que tenho vindo a referir ilustra uma das grandes desgraças da justiça portuguesa e que se resume numa palavra que representa o oposto do que é verdadeira justiça - arbitrariedade, ninguém sabe as regras com que se cose.
Se eu perguntar a um qualquer português, se ele sabe o que é o direito ao recurso, muitos saberão responder e acharão muito bem que esse direito esteja previsto na Constituição.
Mas se eu em seguida lhe perguntar se ele sabe quais as condições em que esse direito pode ser exercido, não há um em cada milhão de portugueses que me saiba responder (a resposta certa é: "Em todas, excepto nos casos em que o arguido, tendo sido absolvido em primeira instância, tenha sido condenado inovadoramente na Relação em pena não-privativa de liberdade, como multa, trabalho comunitário ou prisão com pena suspensa").
Quer dizer, a democracia é um regime de regras, mas as regras são secretas. Quem sai à rua de manhã e caminha sobre as pedras da calçada não sabe nunca se está a transgredir alguma regra. O resultado não é justiça nenhuma mas pura arbitrariedade nas mãos daqueles que interpretam as regras e as torcem a seu belo prazer - os juristas.
Os juristas estão hoje para Portugal como os padres católicos estavam para o mundo medieval. Os padres católicos apropriaram-se da teologia e da relação com Deus, criaram uma linguagem fechada e corporativa, só acessível a eles, de modo a criarem a ideia junto do povo de que só eles falavam com Deus.
Quem quisesse falar com Deus tinha de passar por eles e pagar as respectivas portagens. E depois de pagar as portagens aos padres, quando finalmente chegava a Deus, o crente encontrava quase sempre um Deus desfigurado, totalmente diferente (para pior) da ideia que fazia de Deus.
Até que se atingiu o clímax. O preço de chegar a Deus não parava de aumentar e o crente, guiado pela mão do padre, quando finalmente lá chegava, em lugar de encontrar Deus, encontrava mas era o diabo.
Seguiu-se uma revolução, que ficou conhecida por Reforma religiosa, a qual foi simultânea com o fim de um período da história da civilização ocidental ou cristã - a Idade Média - e o início de outro - o Renascimento. Nos países do norte da Europa onde essa revolução foi mais radical, os padres foram expulsos da intermediação entre o homem e Deus, e os homens passaram a dirigir-se directamente a Deus.
Portugal pode estar à beira de uma revolução semelhante. Os alvos não serão desta vez os padres, mas os juristas. A causa última, essa, continua a ser uma causa de Deus - a Justiça.
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