03 maio 2021

Marçanos da judicatura (X)

 (Continuação daqui)


A casa do pirata [de S. Martinho]


X. Um pirata-bom

É altura de ir de volta ao trinta e um para explicar por que é que se trata de um acórdão-pirata. O acórdão 31/2020 (cf. aqui) é aquele em que o Tribunal Constitucional, através da sua 2ª Secção, concede aos guardas da GNR o direito constitucional ao recurso, permitindo-lhes recorrer para o Supremo da condenação em multa (e indemnizações ao juiz Neto de Moura) que lhes foi imposta na Relação de Lisboa.

O processo continua, porém, ainda hoje retido no Tribunal Constitucional, à espera de ser apreciado pelo Plenário deste Tribunal - uma situação que se mantém há quase ano e meio.

O carácter pirata deste acórdão não se refere ao facto de ele não ter cumprido alguma das formalidades exigidas para sua aprovação. Refere-se, antes, ao facto de se tratar de um acto de pirataria judicial perpretado pelo então presidente do Tribunal, Professor Costa Andrade, que desempenha em todo o processo o papel do "pirata-bom".

Acerca da figura do "pirata-bom", uma explicação prévia é necessária. Desde há muitos anos que considero, embora sendo economista, que o principal problema institucional de Portugal é a justiça, e que os principais problemas económicos de Portugal se resolvem quando o problema da justiça for resolvido. Não é possível, no país, um jogo económico moderno, dinâmico, próspero e justo, quando o árbitro - que é o sistema de justiça - é medieval, lento, retrógrado e corrupto.

A justiça é o principal tema do meu livro "F. - Portugal é uma figura de mulher" (cf. aqui), publicado em 2014, e que teve origem numa conversa com a minha primeira neta, cuja inicial (F.) lhe dá o título.

Certa manhã, eu caminhava com ela na baía de S. Martinho do Porto, quando, de súbito, ela me perguntou, na inocência dos seus 3 anos:

-Avô... há piratas?

A minha primeira reacção foi  seca:

-Há...

Só depois compreendi a apreensão que ia no espírito dela:

-E os piratas são maus?

Procurei tranquilizá-la:

-Há piratas maus... mas também há piratas bons...

Ela, com os seus grandes olhos, olhava agora para mim à espera de mais:

-Por exemplo, o pirata de S. Martinho é um pirata bom... há muito tempo que é meu amigo...

A história estava a pegar e eu continuei. Apontei ao longe para o farol que se ergue no morro junto ao mar e disse:

-Olha... aquela é a casa do pirata...

Fez-se um silêncio e, logo depois, fui surpreendido com um pedido:

-Podemos ir lá vê-lo?

Apesar, na altura, da minha inexperiência de avô, consegui sair da  situação:

-Agora não porque ele está a dormir... Ele vai de noite ao mar apanhar peixe para os filhos e dorme de dia ... Mas qualquer dia vamos lá para o conheceres e brincares com os filhos dele...

Ela aceitou a resposta. O objectivo estava conseguido. Quem tinha começado a conversa com medo dos piratas estava agora disponível para conhecer o Pirata de S. Martinho e brincar com os filhos dele.


Parecia claro desde o acórdão 595/2018 de  13 de Novembro que o Professor Costa Andrade era o único "juiz" do Tribunal Constitucional a considerar que a Lei 20/2013 (que veio dar nova redação ao artigo 400º, nº 1, alínea e) do Código do Processo Penal) era inconstitucional para todas as penas (incluindo as de multa) e não apenas para penas de prisão. E isto era assim porque o direito ao recurso previsto no artº 32º, nº 1, da Constituição também não discrimina segundo a natureza das penas.

Além disso, tinha-lhe agora caído nas mãos o recurso dos guardas da GNR, um caso que estava a agitar a opinião pública, o governo e o meio judicial, e era imperioso resolver o problema, permitindo aos guardas o recurso para o Supremo onde - é praticamente certo -, eles seriam absolvidos. 

Mas como resolver este problema, se ninguém mais no Tribunal Constitucional, para além dele próprio, era adepto da extensão da declaração de inconstitucionalidade da Lei 20/2013 às penas de multa e outras não privativas da liberdade?

Terá começado aqui o acto de pirataria judicial engendrado pelo Professor Costa Andrade. Na qualidade de presidente do Tribunal Constitucional, ele presidia também por inerência à 1ª e à 2ª secções do Tribunal, pelo que começou por chamar o processo a uma das secções presididas por si (muito provavelmente violando o princípio do juiz natural, uma violação que, como se sabe agora, é prática corrente nos tribunais portugueses).

E decidiu levar o processo para a 2ª Secção, e não para a 1ª, por uma razão bem forte. É que na  2ª Secção estava de saída uma juíza que terminava o mandato e que era desfavorável ao propósito do Professor Costa Andrade, e iria ser nomeada uma nova juíza em sua substituição. 

Ora, a nomeação, feita pelo Parlamento, viria a recair sobre uma jovem jurista de 39 anos que assim se via guindada, num abrir e fechar de olhos, ao mais alto posto da judicatura, sem nunca ter feito um julgamento na vida, talvez nem mesmo a filhos indisciplinados. 

Esta jovem jurista era filha de um conhecido professor de Coimbra, militante do PS, e colega do Professor Costa Andrade na Faculdade de Direito. Esta jovem jurista terá sido mesmo aluna do Professor Costa Andrade em Coimbra. Esta jovem jurista tinha uma última peculiaridade - era assessora da presidência do Tribunal Constitucional, isto é, do próprio Professor Costa Andrade. Chamava-se Mariana Canotilho (cf. aqui)

Que felicidade, estava conseguido o mais difícil. O Professor Costa Andrade terá então combinado com a sua ex-assessora o teor do acórdão, nomeou-a de seguida como relatora, sabendo ambos que os outros dois juízes da 2ª Secção iriam votar contra. Um até estava ausente e, provavelmente, tudo foi feito aproveitando a sua ausência. O resultado seria um empate 2-2, mas isso não era problema. O voto de qualidade do presidente resolveria o resto. E foi o que aconteceu. 

Através deste acto de pirataria, o Professor Costa Andrade conseguiu um duplo objectivo, a saber, primeiro, que se fizesse justiça, e, segundo, acalmar,  ao menos temporariamente, a ira dos comandantes da GNR e das outras forças de segurança para tranquilidade do governo e do próprio sistema judicial.

O Professor Costa Andrade agiu nesta história como um verdadeiro pirata-bom.

Ficava apenas um problema por resolver. Como o acórdão 31/2020 contrariava a jurisprudência contida no acórdão 595/2018, a Lei do Tribunal Constitucional manda que ele tem de ser ratificado pelo Plenário.

Mas como, se todos os "juízes", com excepção dos dois que o subscreveram - Mariana Canotilho e o próprio Costa Andrade - são contra ele?

Este é um problema que o Professor Costa Andrade nunca conseguiu resolver até abandonar o Tribunal Constitucional em Fevereiro deste ano. 

E que continua por resolver. 

(Continua)

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