24 março 2021

a liberdade de acusação criminal

"A imparcialidade apenas pode ser assegurada em termos de um sistema que delimite adequadamente a separação das funções, de investigar, acusar e julgar. E todos nós, eu tenho dito, estamos desafiados a pensar novos modelos para que isto que ocorreu [a parcialidade do juiz Sérgio Moro] não se volte a repetir" (juiz-conselheiro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, ontem no julgamento de suspeição de Sérgio Moro, cf. aqui, min: 4:37:15).


Quase em simultâneo, a imparcialidade dos juízes foi esta semana tema nos dois lados do Atlântico, no Brasil a propósito do julgamento de suspeição (parcialidade) do juiz Sérgio Moro pelo Supremo Tribunal Federal, em Portugal por ocasião da publicação de um regulamento relativo à alteração na distribuição de processos nos tribunais.

Depois de 47 anos de democracia em Portugal, e 36 no Brasil, ambos os países, que possuem uma tradição de justiça inquisitorial que é profundamente anti-democrática, ainda andam à procura de um modelo democrático para os seus sistemas de justiça, um modelo que faça valer, ao menos, o principal atributo de um juiz ou de um tribunal democrático - a imparcialidade.

Publicar regulamentos sobre distribuição de processos a juízes, como se fez esta semana em Portugal, ou condenar, por parcialidade, um juiz federal no Brasil, como aconteceu também esta semana do outro lado do Atlântico, são passos a caminho de um sistema de justiça imparcial. Mas são apenas pequenos passos, o brasileiro mais significativo do que o português.

Mas, então, o que é que seria um verdadeiro passo de gigante nesta matéria?

-A desnacionalização da acusação criminal. 

Em Portugal (como no Brasil) a acusação criminal é um monopólio do Estado. Só o Estado, através do Ministério Público, pode acusar criminalmente uma pessoa, singular ou colectiva. 

Se me roubarem a carteira, eu não posso acusar o ladrão. Só o Ministério Público o pode fazer, sendo a minha função reservada à de assistente do Ministério Público. O Ministério Público é o porteiro do sistema criminal, só entra no sistema criminal quem o Ministério Público quiser e, mais importante ainda, não entra lá quem o Ministério Público  não quiser.

O mal maior deste monopólio do Estado não é o de ele conferir ao Ministério Público a faculdade de vender processos criminais ou o seu arquivamento, transformando pessoas inocentes em criminosos ou evitando que criminosos sejam levados à justiça, embora estes também sejam grandes males.

O mal maior deste monopólio do Estado é que ele cria uma corporação de acusadores profissionais - os procuradores do Ministério Público - que convivem diariamente com os juízes nos mesmos locais de trabalho - os tribunais; que foram colegas dos juízes nas mesmas Faculdades de Direito; que frequentemente são casados com juízes; e que, eles próprios, dado o paralelismo e a interpenetração das carreiras, se podem um dia tornar juízes.

No sistema acusatório de Portugal e do Brasil, herdado da Inquisição, o lema é "O Estado acusa e o Estado julga". O Estado acusa através do Ministério Público, o Estado julga através de juízes que são também empregados do Estado. Enfim, o Estado julga em causa própria, os juízes tendem a dar razão aos seus colegas de trabalho e amigos - os procuradores do MP. O sistema está feito para aniquilar qualquer oponente do Estado, isto é, qualquer adversário do poder político do momento.

Neste sistema, ao longo das suas carreiras, os juízes convivem com os acusadores, e tornam-se amigos dos acusadores, de  uma maneira que não tem paralelo com a relação fugaz que os juízes mantêm com os advogados de defesa. Esta promiscuidade induz a que seja apenas humano que os juízes  se aliem aos seus amigos acusadores quando se trata de julgar alguém.

É esta promiscuidade institucional entre procuradores do MP e os juízes - que era o traço dominante da Inquisição - que é a principal responsável pela parcialidade dos juízes. Esta promiscuidade tenderá a anular-se no dia em que os cidadãos portugueses e brasileiros dispuserem de uma liberdade democrática que as suas jovens democracias nunca lhes reconheceram e que, diga-se em abono da verdade, eles também nunca reclamaram  - a liberdade de acusação criminal. 

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