01 abril 2020

Os ventiladores

Por entre estes dias de clausura, existem momentos verdadeiramente hilariantes.

Aconteceu comigo ontem à noite, ao telefone com um amigo, durante mais de uma hora.

O tema foi um artigo da jornalista São José Almeida de sábado passado no Público. Tem o título "Ventiladores salvos através do BNU de Macau". O episódio que ela descreve ter-se-á passado entre domingo e segunda-feira, 22-23 de Março (cf. aqui).

É uma maravilhosa aventura heróico-cómica do Governo português e da burocracia portuguesa, metendo pelo meio o embaixador em Pequim, para trazer urgentemente para Portugal cerca de 500 ventiladores, um dos equipamentos médicos mais necessários durante a presente crise.

A primeira e grande dificuldade que os heróis nacionais encontraram foi o mercado - "Este mercado está uma selva", escreve São José Almeida, citando um dos heróis - e é contra este inultrapassável obstáculo que se vão erguer, nas horas seguintes, os intrépidos portugueses - governantes, burocratas e até o embaixador.

Tudo por causa de uma transferência de 10 milhões de dólares para a China a fim de pagar os 535 ventiladores que o Governo português encomendou de urgência a uma empresa chinesa (cf. aqui). Cada ventilador custa cerca de 19 mil dólares, aproximadamente 17 mil euros, e tem o aspecto que se pode ver nesta imagem: cf. aqui.

Aquilo que se faz rotineiramente no mundo todos os dias, que é transferir dinheiro de um lado para o outro, transformou-se num dos maiores actos de heroísmo dos portugueses na China durante a presente crise, um exemplo de cooperação entre o sector público e o sector privado, e um paradigma de solidariedade entre o ex-colonizador e o ex-colonizado.

Foi nesta altura que o meu amigo sugeriu que a Sonae teve muita sorte em o Governo não a mandar exumar o cadáver do Eng. Belmiro de Azevedo para que este lhe fornecesse os códigos bancários para a transferência.

E o que dizer da intervenção decisiva do Banco Nacional Ultramarino (BNU) - atalhei eu -, um banco extinto em Portugal há muitos anos, quanto mais não fosse pela sua conotação colonialista, mas que persiste em Macau a lembrar aos vindouros a presença portuguesa na China?

Mas da minha parte, o momento mais heróico foi imaginar o embaixador português a correr esbaforido, aeroporto fora, com o comprovativo da transferência na mão, em direcção ao avião da Air Canada, pronto a descolar da pista em direcção a Toronto.

Aos gritos: "Os ventiladores são nossos!...Os ventiladores são nossos!…" E o piloto canadiano, muito relutante, mas procurando evitar um incidente diplomático, a mandar abrir de novo os compartimentos de carga para transferir os ventiladores para o avião que os havia de transportar para Portugal.

Foi assim que  os burocratas e governantes portugueses, com aquele fantástico sprint final do embaixador, conseguiram arrematar na China os 500 ventiladores que viriam a salvar muitas vidas nos hospitais portugueses, sonegando-os à ganância dos canadianos e à selva do mercado.

Tudo isto se passou - não é de mais relembrar -, entre domingo e segunda-feira, 22 e 23 de março. (Devido à diferença horária, enquanto ainda é domingo em Portugal já é segunda-feira na China).

-E quanto aos ventiladores?

Pois... foi exactamente por aí que começou a conversa entre mim e o meu amigo e que começaram também as primeiras dúvidas e as primeiras gargalhadas:

-Onde é que param os ventiladores?

-E será que o Governo comprou os ventiladores a uma empresa séria ou comprou na candonga?
(A exigência do pagamento adiantado mais aquela ameaça de que os ventiladores iriam para o Canadá - na qual se fundou o heroísmo das autoridades portuguesas -  não augura nada de bom acerca da integridade da empresa vendedora, cuja identidade nunca foi revelada).

-Onde é que param os 500 ventiladores!?

Pois.. é esta a pergunta para a qual eu e o meu amigo não conseguimos resposta, era já meia-noite quando desligámos o telefone.

Depois daquele acto de heroísmo da gesta portuguesa no Oriente que - não é de mais insistir -, teve lugar entre domingo e segunda  (22-23 de Março), passaram quatro dias até que, na sexta-feira seguinte (27 de Março), o primeiro-ministro foi de avião ao Porto.

Imagine-se que - por coincidência, por mera coincidência - aterrou no aeroporto Francisco Sá Carneiro poucos minutos antes do avião da Ethiopian Airlines fretado pelo Governo português que haveria de trazer da China o material médico que nos havia de salvar a todos.

O avião chegar, chegou e o primeiro-ministro, orgulhoso, até lhe tirou fotografias (cf. aqui).

-E os ventiladores?

-Bem, esses é que não chegaram. O avião trouxe máscaras, fatos e outras coisas assim, mas os ventiladores é que não.

Ainda não era caso para desesperar.

Na mesma sexta-feira, 27 de março, mas à noite, chegou a Lisboa outro avião proveniente da China, especialmente fretado para trazer material médico para Portugal. Era suposto trazer 35 toneladas de material, mas só trouxe 24 .

-E os ventiladores?

-Não chegaram (cf. aqui).

Estava eu na galhofa com o meu amigo, já passava das onze da noite quando, tendo a TV ligada, lhe chamei a atenção, em sobressalto:

-Olha... liga a RTP3 … liga já!… estão a filmar a chegada ao Porto de mais um avião da China com material médico para Portugal…

O meu amigo, que é médico, adiantou logo:

-O avião deve precisar de um comprimento extra de pista porque deve vir muito pesado…

Sabe-se hoje que veio efectivamente da China com escala na Grécia (cf. aqui)

-E os ventiladores?

-Sobre esses é que nem sinal.

Durante a tarde de ontem já tinha aterrado um avião da TAP em Lisboa proveniente da China, com 15 toneladas de material médico.

-E trazia os ventiladores?

-Pois... não se sabe… parece que não… não há sinais deles… (cf. aqui)


O mercado está, de facto, uma selva. Tudo aponta para que o Governo português tenha embarcado no conto do vigário. E que a  jornalista São José Almeida, do Público, nos tenha servido até agora a melhor história trágico-cómica da presente crise.

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