10 abril 2019

a real gana

Eu pretendo agora explicar a proposta legislativa apresentada pelo Bloco de Esquerda e que está descrita no post em baixo.

Para isso vou naturalmente recorrer ao meu case-study que, sendo um caso muito simples, tem toda a vantagem pedagógica de, mesmo aos olhos do cidadão menos informado, mostrar o objectivo que se pretende atingir e a sua racionalidade.

Há uns anos, um comentador jornalístico criticou o político Rui Rio em termos tais que este se sentiu ofendido. O caso foi para tribunal e subiu ao Tribunal da Relação do Porto. O TRP decidiu que não havia crime nenhum e o comentador jornalístico foi absolvido (cf. aqui).

Anos depois, um outro político, aliás muito próximo de Rui Rio, Paulo Rangel, é visado por um comentador televisivo em termos que considera ofensivos. O caso vai para tribunal e sobe igualmente ao Tribunal da Relação do Porto. Desta vez, o TRP decidiu que há crime e o comentador televisivo foi condenado (cf. aqui).

A questão é a seguinte. Afinal, é possível ou não a um cidadão, habitando na região abrangida pela comarca judicial do Porto, criticar políticos em termos tais que estes se considerem ofendidos?

Ninguém sabe a resposta a esta questão. O Tribunal da Relação do Porto tão depressa diz que sim como diz que não. Depende do juiz do TRP que é chamado a julgar o caso. Os juizes dispõem de um poder arbitrário. Uns dizem que é crime outros dizem que não é crime.

Ora, a democracia foi instituída para acabar com o poder arbitrário seja de quem fôr, incluindo o dos juízes. É por isso que a democracia é um regime de regras - regras às quais todos estão submetidos, incluindo os juízes.

Sendo os juízes os profissionais que zelam para que todas as regras sejam cumpridas, são eles também, mais do que ninguém, que têm de dar o exemplo acerca do cumprimento das regras a que eles próprios estão sujeitos nos seus julgamentos.

E é aqui que chegamos ao cerne da questão. Existem regras para julgar a classe de casos à qual pertencem os dois casos acima - uma classe de casos judiciais que se caracteriza pelo conflito entre o direito à honra e o direito à liberdade de expressão - ou cada juiz decide segundo aquilo que lhe dá na real gana?

A resposta é que existem regras, ao conjunto das quais se chama jurisprudência. A jurisprudência é definida pelos tribunais superiores que, para aquela classe de casos, é o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Tendo Portugal subscrito a Declaração Universal dos Direitos do Homem (CEDH), os seus juízes estão vinculados a essa jurisprudência nas decisões que proferem. (É de notar que, embora a CEDH tenha sido estabelecida em 1950, Portugal só conseguiu aderir em 1976 porque o regime anterior do Estado Novo não qualificava como democrático à luz do Conselho da Europa).

Por outras palavras, as decisões judiciais numa democracia não são à escolha do freguês, mesmo se o freguês é juiz. O juiz não pode decidir de acordo com o que lhe dá na real gana, mas tem de decidir de acordo com a jurisprudência democrática que, nesta classe de casos, é a jurisprudência do TEDH.

Porque, se os juízes decidem segundo o que lhes dá na real gana, o resultado já se viu qual é - a arbitrariedade das decisões, o juiz convertido em autoridade arbitrária, a falta de confiança na Justiça, os cidadãos sem saberem as regras com que se cosem, a injustiça e a anarquia.

Voltando à questão colocada acima. Afinal é ou não possível, na região abrangida pela comarca judicial do Porto, um comentador ofender um político?

A verdadeira resposta é a que está contida no primeiro dos dois casos citados acima, aquele que respeita a Rui Rio. E a resposta é sim. No conflito de direitos, o direito à liberdade de expressão prevalece (de forma esmagadora) sobre o direito à honra.

É essa a resposta sancionada pela jurisprudência do TEDH (cf. aqui) que é clara a esse propósito, nomeadamente quando afirma:

"2. A liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam".

Pelo contrário, os dois juízes que assinaram a segunda decisão (cf. aqui), relativa ao Paulo Rangel, é que ignoraram ostensivamente a jurisprudência do TEDH, mesmo sob o aviso persistente de uma colega que votou vencida. Estão a cometer uma falta profissional grave, estão a decidir segundo a sua real gana, de acordo com uma jurisprudência que é só sua, mas que não é válida porque não está sancionada democraticamente pelos tribunais superiores.

São estes juízes que, se a proposta do Bloco de Esquerda for aprovada no Parlamento, terão sobre si um processo disciplinar. E merecem-no.

Porquê?

Porque violaram as regras jurisprudenciais democraticamente estabelecidas, julgaram de modo arbitrário, cometeram o pior erro que um juiz pode cometer - condenar um inocente -, lançaram a incerteza e o descrédito sobre o sistema de Justiça e ameaçam o próprio regime democrático.

Quando já ninguém souber as regras com que se cose, o resultado só pode ser a anarquia.

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