20 novembro 2018

para Santarém

(Tema: Terrorismo Judicial - O Guardião do Tejo)


A jurisprudência é o conjunto de regras a que os juízes estão vinculados quando proferem as suas sentenças. Ela visa assegurar o sentimento de justiça na comunidade, e a certeza da justiça, evitando que juízes diferentes, perante dois casos semelhantes, profiram sentenças substancialmente diferentes.

A jurisprudência é definida pelo Tribunal superior que, em geral, é o Supremo Tribunal de Justiça. Mas no caso que opõe a Cuatrecasas (em nome da Celtejo) ao Arlindo Marques, sendo matéria coberta pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o Tribunal superior é o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que funciona em Estrasburgo. É este Tribunal que define a jurisprudência do caso Celtejo vs. Arlindo Marques (cf. sumariamente aqui).

O Arlindo Marques começará por ser julgado por um Tribunal de primeira instância em Santarém. Se fôr condenado, pode recorrer para o Tribunal da Relação e deste para o Supremo Tribunal de Justiça. Se permanecer condenado, pode então recorrer para o TEDH.

Neste processo, num ou noutro destes tribunais - em última instância no TEDH - o Arlindo Marques será absolvido.

Porquê?

Porque a jurisprudência manda que ele seja absolvido.

O direito à liberdade de expressão é, em primeiro lugar, um direito para criticar pessoas ou instituições no âmbito da discussão pública porque, se fosse para dizer bem delas, este direito não era preciso para nada. As pessoas e as instituições criticadas, dependendo da sua sensibilidade, por vezes ofendem-se. E segundo a queixa da Cuatrecasas, é isso que sucedeu com a Celtejo. Ofendeu-se.

Porém, a ofensa, só por si, não constitui crime ou facto ilícito. Naquela que é a regra de jurisprudência do TEDH mais vezes citada, "A liberdade de expressão vale não somente para as informações ou ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam".

Embora a jurisprudência se refira frequentemente aos jornalistas, porque são eles os alvos mais frequentes deste tipo de processos judiciais, ela aplica-se igualmente a qualquer pessoa que se exprima publicamente, como é o caso do Arlindo Marques.

O direito à liberdade de expressão é ampliado quando o alvo é uma figura pública - sendo as empresas, como a Celtejo, consideradas como tal - e o emissor está a prosseguir um fim de interesse público, como é notoriamente o caso do Arlindo Marques em defesa do Tejo.

Ao contrário do que sugere a queixa da Cuatrecasas, que pretende levar o Arlindo Marques a provar a veracidade de tudo aquilo que afirmou - no jargão jurídico, um procedimento conhecido pelo nome de exceptio veritatis (prova da verdade) - a jurisprudência não lhe exige que o faça. Não é demais acentuar esta regra jurisprudencial: o Arlindo Marques não é sequer obrigado a provar a verdade daquilo que afirmou sobre a actividade poluidora da Celtejo.

Esta regra parece desconcertante à primeira vista e merece alguma explicação. Se um jornalista suspeita que duas pessoas A e B estão envolvidas num acto de corrupção e, antes de denunciar o caso no jornal, tiver que saber, com exactidão, toda a verdade acerca daquilo que vai publicar, a notícia nunca sairá e os corruptos nunca serão denunciados. A razão é que as pessoas que têm toda a verdade acerca do acto são os próprios suspeitos A e B, que nunca fornecerão ao jornalista a informação de que ele necessita para se certificar da verdade.

Da mesma forma, se antes de denunciar a Celtejo como poluidora do Tejo, o Arlindo Marques tivesse de se certificar que tudo o que se propôs dizer é exacto e corresponde à verdade, o Arlindo Marques nunca teria aberto a boca para denunciar a poluição do Tejo. A razão é que a maior parte da informação necessária ao apuramento da verdade é a Celtejo que a tem, e a Celtejo nunca abrirá  as portas ao Arlindo Marques para esse efeito.

Tudo o que é necessário para legitimar as afirmações do Arlindo Marques é que exista um nexo de causalidade, ainda que ténue, entre os episódios de poluição do Tejo na região de Santarém, que ele gravou e registou em fotografias e sobre os quais se pronunciou, e a Celtejo, que é uma empresa de celulose situada em Vila Velha de Rodão.

E esse nexo de causalidade existe e é óbvio. É o seguinte: o Tejo corre de Vila Velha de Rodão para Santarém.

A partir daqui, o Arlindo Marques pode dizer cobras e lagartos acerca da Celtejo em relação com a poluição do Tejo a jusante de Vila Velha de Rodão, que nada disso é crime ou mero ilícito.

Por isso, o Arlindo Marques será de certeza absolvido.

Este processo nunca devia ter dado sequer entrada em Tribunal. Quem o fez, fê-lo ou por incompetência ou por má-fé. Chama-se SLAPP ou bullying judicial, que é uma forma de terrorismo. Em certas democracias institucionalmente mais avançadas, como o Canadá e os EUA, é proibido (cf. aqui).

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