26 novembro 2017

no tempo do fascismo

Eu gostaria agora de recuar a 1965, governava Salazar, para explicar como é que seria este julgamento então, e recriar o ambiente na sala de audiências.

Um comentador televisivo produziu comentários sobre um alto dignitário do regime salazarista, que, invocando o seu direito à honra,  lhe moveu um processo por difamação. O crime dá lugar a pena de prisão e a compensações indemnizatórias ao ofendido

O primeiro aspecto a notar é que o réu não poderia invocar o seu direito à liberdade de expressão, simplesmente porque esse direito não existia. (É precisamente a invocação deste direito que hoje lhe daria a certeza de ser absolvido).

Segundo, as testemunhas. O ofendido - que seria um ministro, um director-geral ou um alto dirigente da União Nacional - não teria dificuldade em arranjar um batalhão de testemunhas a dizer que ele é um político muito respeitado e um insígne jurista.

Pelo contrário, o réu é que iria ter muita dificuldade em arranjar testemunhas que fossem para o Tribunal  dizer que o ofendido é um politiqueiro e um jurista-de-vão de escada. Corriam o risco de sair da sala de audiências acusadas de difamação como o réu que foram defender.

Nesta altura, a sala de audiências parece um barco em vias de adornar do lado em que se senta o réu e de o atirar borda fora.

Mas, restará ao réu, ainda assim, alguma esperança?

Sim, uma esperança condenada à frustração. Este sistema de justiça abre-lhe uma porta por onde ele pode entrar, para logo a seguir cair num buraco. É um verdadeiro alçapão.

E que porta é essa?

"Prove que aquilo que disse do ofendido é verdade - caso em que será absolvido".

Trata-se aqui do incidente processual conhecido por "exceptio veritatis", em que o réu é chamado a provar a verdade das suas afirmações consideradas ofensivas ou caluniosas.

Antes de prosseguir,  gostaria de mencionar que a "exceptio veritatis", a exigência de que seja o réu a fazer prova de que não cometeu um crime, é mais outro elemento do carácter inquisitorial ou fascista deste sistema de justiça. Num sistema de justiça verdadeiro e democrático, o ónus da prova pertence a quem acusa, não a quem é acusado.

O facto é que o réu nunca conseguirá provar que o ofendido é um politiqueiro ou um jurista de vão-de-escada, (nem o ofendido, se lhe fosse imputado o ónus da prova, alguma vez conseguiria provar que não é nem uma coisa nem outra.)

Porquê?

Trata-se de juízos de valor, acerca dos quais não se aplicam critérios de verdade.

Por exemplo, uma pessoa diz "esta maçã é boa" porque gosta muito de maçãs ácidas, e outra diz "esta maçã é má", porque as detesta. Onde é que está a verdade, a maçã é boa ou é má? Em lado nenhum. São juízos de valor - meras opiniões.

Aquilo que este sistema de justiça está a pedir ao réu é que ele prove que é verdade uma coisa que é impossível provar ser verdade (ou mentira).

(Compreende-se agora porque é que a jurisprudência do TEDH dispensa a "exceptio veritatis" - aqui, ponto 5. Por outras palavras, diz o TEDH, não vale a pena entrar nessa discussão - se é politiqueiro ou se não é politiqueiro -, porque isso não conduz a nada, e é irrelevante para a sentença).

Em suma, no tempo do fascismo este réu estaria irremediavelmente condenado. Nunca mais ninguém iria à televisão criticar um alto dignitário do regime.

E, no entanto, hoje estaria irremediavelmente absolvido.

Porquê?

Porque gozaria do direito à liberdade de expressão, porque este direito prevaleceria sobre o direito à honra, e porque estaria dispensado da "exceptio veritatis".

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