06 março 2016

sentido

O mais interessante nesta atracção é que não há sexualidade envolvida. Naquela idade (6-9 anos), a sexualidade ainda não despertou nos rapazes, o que só acontece por volta dos 11 ou 12 anos. Conclusão: a atracção de um homem por uma mulher não é, em primeiro lugar, de natureza sexual.

Há uns  anos, um amigo meu, que consagrou devotamente a sua vida à Igreja, explicou-me que o amor que um homem sente pela Igreja é em tudo semelhante ao amor que um homem sente por uma mulher. Vindo de quem vinha, eu não tinha razão para duvidar porque a Igreja é, ela própria, uma figura de mulher (Maria). Também aqui se trata de um amor que não contém qualquer traço de sexualidade.

(Nessa altura, também eu próprio me interroguei se era isso que eu sentia pela Igreja - um amor semelhante àquele que um homem sente por uma mulher. Cheguei rapidamente à resposta. Não, no meu caso, não era. Aquilo que eu sinto pela Igreja é admiração, uma grande admiração intelectual, e permanece assim até hoje. A minha relação com a Igreja vem puramente do intelecto, não do coração.)

Mas aquela declaração do meu amigo permaneceu sempre para mim um enigma. Eu não sentia pela Igreja um amor semelhante àquele que um homem sente por uma mulher, e mesmo sendo a Igreja uma figura de mulher, como é que se pode sentir um amor assim por Maria que, em todo o caso, é uma mulher distante?

"Deus ofereceu-me a tua pessoa e fez de ti a minha vocação", escreveu o cardeal Wojtyla a Anna-Teresa. Ela era a razão de ser da sua existência, o seu chamamento, era ela que dava sentido à sua vida. Ela era também "uma graça de Deus".

Na figura concreta de Anna-Teresa, que surge inopinadamente e "por acaso" (na realidade, por vontade de Deus) na sua vida, o cardeal Wojtyla encontra finalmente (tinha na altura cinquenta e seis anos) todo o sentido da sua vida de padre - servir uma Mulher.

Anna-Teresa dá realidade concreta à figura de Maria.

Agora com a figura de Anna Teresa no espírito (em outra passagem das cartas, ele refere que ela está sempre no seu espírito), inspirado pela figura sempre presente dela, o cardeal Wojtyla redobra o seu sentido de missão - servir a Mulher, agora na figura concreta de Anna-Teresa. Acabaria por chegar a Papa, e depois a Santo, sob a inspiração e ao serviço de uma Mulher.

Meses antes, Anna-Teresa tinha-lhe declarado: "Eu pertenço-te".

"Dizes-me que te sentes despedaçada. Não consegui encontrar uma resposta às tuas palavras", escreve o cardeal. Para logo a seguir acrescentar: "Se eu não tivesse esta convicção, alguma certeza moral da graça (de Deus), e de agir em obediência a ela, eu não teria a coragem para me comportar desta maneira".

A parte em bold parece conter a única referência (embora implícita) à possibilidade de uma relação física, à possibilidade de aquele amor se converter num amor comum entre um homem e uma mulher. E é a fé que o leva a pôr de lado essa possibilidade, levando-o a agir racionalmente (*) e a prosseguir a sua vida ao serviço de todas as mulheres deste mundo (representadas na figura de Maria, ou, mais concretamente de Anna-Teresa).

Extraordinário!

Um Santo, tal como Cristo, é um homem extraordinário, um herói. João Paulo II é, de facto, um santo e, se eu pudesse, faria juntar estas cartas aos documentos da sua canonização.

E o mistério ficou desvendado. É uma Mulher que dá sentido à vida de um homem. Sem ela, sem ser para a servir, um homem não serviria para nada, e nem sequer saberia o que anda cá a fazer. Era esse mistério que atraía aquelas crianças debruçadas sobre o muro do recreio das raparigas: "Para onde, e até onde, alguma de vós, ou outra semelhante a vós, um dia me levará?"



(*) Racionalidade significa aqui ser consequente consigo próprio, respeitando os votos de castidade e de celibato com que se comprometeu perante Deus e os homens no sacramento da sua ordenação. Numa cultura racional como é a católica, a fé é o primeiro passo, e também o último, da razão. Nesta passagem, ela aparece claramente na sua função de primeiro passo da razão.

4 comentários:

Harry Lime disse...

Aquilo que eu sinto pela Igreja é admiração, uma grande admiração intelectual, e permanece assim até hoje. A minha relação com a Igreja vem puramente do intelecto, não do coração.


O PA escreve isto e depois critica o Martinho Lutero por pôr a Biblia e a plain reason acima de tudo.

Mais uma vez o escrevo: o PA não é catolico. É um protestante (nos termos em que o próprio PA os define!) que, por acaso, concorda com a Igreja Catolica. Não há mal nenhum nisto. Só tem de o reconhecer e ir em frente.

Não é a mesma coisa que o catolicismo da minha Mãe ou da Mãe do PA: que vem da tradição e do sentimento (como o PA apregoa mas não pratica)

E sim, há homens que podem ter esta forma de estar na religião: na realidade não consigo conceber que um homem abrace a vida religiosa sem ter uma forte ligação emocional a Deus.

Rui Silva

Harry Lime disse...

E concordo que o Papa João Paulo II é um homem bom.

Mas não é mais extraordinário do que qualquer homem casado (de qualquer confissão religiosa... até ateu!) que resiste ao amor duma mulher bonita.

Trata-se apenas de ser fiel aos seus compromissos! E desconfio que nenhuma religião no Mundo defende que um homem deve falhar á sua palavra. Na realidade, desconfio que até os ateus e os agnosticos acham que um homem que não respeita os seus compromissos é um mau homem.

Rui Silva

Anónimo disse...

Mais um excelente texto, Pedro Arroja.

Anónimo disse...

Não é apenas um «excelente texto», é, a meu ver, uma excelente sequência de textos. Li com o mesmo interesse a notícia acerca do amor que num certo sentido diríamos platónico ente Anna-Teresa Tymieniecka Marie e Karol Wojtyla, atentei nos mesmíssimos tópicos e cheguei a conclusões parecidas com as do professor Pedro Arroja. Gostaria, porém, de acrescentar dois pontos e uma curiosidade:
Concluímos que o amor por uma mulher dá sentido à vida de um homem, inspira-o e, se ele tiver qualidades suficientes, que ela acenderá, isso fará dele um herói, ou mesmo um santo (passe a parcial redundância). Portanto, a mulher dá sentido à vida do homem que a ama, mesmo num amor impossível, como este, ou como, p.e., o de Olivier Messaeien e Yvonne Loriod nos primeiros 20 anos. Mas falta a perspectiva feminina. Que sentido tem ou pode ter para uma mulher um amor destes? Entregar-se assim, entregar assim a sua vida a um homem que a quer mas que não a pode ter? Talvez a Zazie e a Marina, ou outra leitora nos possam elucidar...
O outro ponto tem que ver com o escapulário. Porquê um escapulário? (A resposta de Karol à confissão/declaração dela é a de que, após longa reflexão e perplexidade, chegou à conclusão de que ela é como que um escapulário). À partida é intrigante. Tinha uma ideia vaga de que um escapulário fosse um pano usado por religiosos... Procurei e constato que há dois sentidos principais para a palavra. Ambos são, de facto, objectos religiosos e ambos destinam-se, nas palavras da Wikipedia, a "remind the wearer of their commitment to live a Christian life". O primeiro (o, que eu conhecia) é realmente uma espécie de pano que cobre os ombros, peito e costas de quem o usa, normalmente monges, membros de confrarias, etc., identificando e recordando uma opção de vida. O segundo, o «escapulário devocional», é um objecto mais pequeno, normalmente uma medalha (sendo o mais conhecido o Escapulário de Nossa Senhora do Carmo, ou do Monte Carmelo), e é um tipo de «sacramental», i.e. «sinais sagrados por meio dos quais, imitando de algum modo os sacramentos, se significam e se obtêm, pela oração da Igreja, efeitos principalmente de ordem espiritual. Por meio deles, dispõem-se os homens para a recepção do principal efeito dos sacramentos e são santificadas as várias circunstâncias da vida» (Catecismo da Igreja Católica, can. 1667). De algum modo os escapulários devocionais exprimem, como os outros, um compromisso e um sentido na vida do seu portador. Enfim, não é necessário acrescentar mais nada, Karol Wojtila vê em Anna-Teresa um sinal sagrado na sua vida, portador de bênção e de sentido, sagrado, nela. É todo um manifesto íntimo do então Cardeal, Arcebispo de Cracóvia. Anna-Teresa, que não pode deixar de ter acendido fortemente o seu desejo e sexualidade, não é vista à moda medieval como uma insídia do demónio para o tentar, mas como uma bênção divina na sua vida, para lha encher de Graça e de Sentido. Magnífico! Magnífica história de amor. Pedro Cruz