14 fevereiro 2016

Causas fracturantes

Existe um elemento de provincianismo na nossa cultura que não deixa de me fazer sorrir e encolher os ombros. Foi assim que reagi quando há cerca de dois meses vi na televisão a excitação dos deputados (e, devo dizer sem ofensa, principalmente de algumas deputadas, uma delas até ex-ministra da justiça) quando foi aprovada a lei da adopção por casais do mesmo sexo.

Parece que tinham descoberto a pólvora e acabavam de introduzir no país a maior novidade que o mundo acabara de conhecer. A verdade, porém, é que a lei é uma mera imitação daquilo que já existe lá fora pelo menos há décadas. O Canadá, por exemplo, legalizou a adopção por casais do mesmo sexo em 1995.

O Canadá é, de resto, um excelente exemplo de um país vanguardista nestas causas que entre nós são conhecidas como causas fracturantes. E é também um excelente exemplo para explicar por que é que lá estas causas não são fracturantes, mas em Portugal são. Os pretensos intelectuais portugueses cometem o erro fatal dos intelectuais - que é o da generalização e, portanto, da igualização - ao considerarem que uma lei que é boa num país como o Canadá (ou a Holanda ou a Suécia) é igualmente boa em Portugal.

O Canadá é um país jovem fundado por duas nacionalidades que ainda hoje se mantêm separadas e rivais, a francófona (minoritária, localizada sobretudo no Québec) e a anglófona (maioritária, localizada nas outras províncias do país). Os primeiros francófonos eram católicos, fugidos dos EUA onde o catolicismo estava proibido, e os primeiros anglófonos eram protestantes (suponho que na maioria anglicanos) leais à coroa britânica ("loyalists"), também fugindo à maioria calvinista e independentista que fundou os EUA.

Anglófonos e francófonos,  protestantes e  católicos, nunca se misturaram, por força da maioria protestante, e mantêm até hoje uma rivalidade sem limites. A Província do Québec (de maioria francófona) possui hoje um estatuto que é substancialmente  diferentes de todas as outras Províncias do Canadá (de maioria anglófona). As regras do jogo neste país foram desde o início "cada um vive separado e à sua maneira".

À medida que o Canadá foi recebendo imigrantes - existem hoje 182 nacionalidades diferentes no país - esta regra essencial de que "cada um vive separado e à sua maneira" manteve-se, mas para assegurar a viabilidade do país, e  a paz social, haveria agora que acomodar a maneira de viver de cada uma das nacionalidades que lá se foram estabelecendo. Foi o início da política de multiculturalismo que caracteriza o país.

O Canadá encoraja que os portugueses que lá vivem se mantenham portugueses, mantendo viva a sua língua, a sua história e as suas raizes étnicas, numa palavra, a sua cultura. Eu próprio, durante anos fui director em Ottawa de uma escola que funcionava ao Sábado de manhã onde se ensinava aos filhos dos portugueses três disciplinas: Português, História de Portugal e Geografia de Portugal. O Governo Canadiano, para além de ceder as instalações, pagava tudo (livros, salários de professores, etc.).

 Escolas semelhantes existiam em todas as cidades onde houvesse portugueses. Mas não apenas isso. Existiam escolas semelhantes para polacos, japoneses, finlandeses, etc.. A ideia - não é de mais insistir - era que os portugueses, sendo embora cidadãos canadianos, mantivessem as suas raízes  portuguesas, os finlandeses mantivessem as suas raízes finlandesas, e o mesmo com os polacos, os índios Inuit e os birmaneses.

Ora, em cerca de duzentas nacionalidades diferentes que vivem no Canadá - e  que são praticamente todas as nacionalidades do mundo - há-de existir alguma que tem por tradição a eutanásia (a japonesa é uma delas, mas se procurarmos vamos certamente encontrar outras). O mesmo para o aborto, o casamento gay ou a adopção por casais do mesmo sexo.

Mas se a regra vigente no país desde o seu nascimento é a de que "cada um vive separado e à sua maneira", então, mais cedo ou mais tarde, o Canadá tem de aprovar uma lei para acomodar a tradição japonesa (e outras que contemplam a eutanásia), caso contrário está a discriminar injustamente esta nacionalidade.

Esta lei no Canadá (como as do casamento gay, aborto e adopção por casais do mesmo sexo), não é uma lei fracturante. Pelo contrário, é englobante, é a maneira de trazer à nação canadiana a comunidade japonesa (e outras que têm a eutanásia como tradição), que até aí estava injustamente discriminada.

Então, e em Portugal, é diferente? Claro que é. Portugal não nasceu, nem nunca teve, comunidades separadas, como existem no Canadá. É uma nação unitária e católica desde o seu início. Não existem políticas separadas para diferentes nações porque não existem nações diferentes dentro de Portugal. Imigrantes ucranianos que cheguem a Portugal, em breve estão a casar com portugueses e a ter filhos que serão para sempre portugueses. Os portugueses, sendo católicos, misturam-se. Os ingleses que constituem a maioria fundadora do Canadá, sendo protestantes, nunca se misturam. Tudo permanece separado.

A próxima questão, e a mais importante, é a seguinte. Mas então por que é que na tradição portuguesa não se permite a eutanásia, e uma lei que a permita é uma causa fracturante no país (como se está a ver)?

Porque a cultura portuguesa é católica (universal) e a Igreja Católica há muitos séculos que está por todo o mundo a observar o que se passa, incluindo o Japão, para onde, de resto, foi levada por portugueses. Desde há pelo menos cinco séculos que a Igreja Católica (e também os portugueses) têm conhecimento de que a cultura Shinto do Japão é favorável à eutanásia (e altamente desfavorável à continuásia, como lhe chama o Joaquim).

Os padres reportam ao Bispo e este a Roma. Há pelo menos cinco séculos que a Igreja Católica sabe das tradições eutanásicas do Japão (e de outras culturas), e desde então que terá ponderado se essas tradições seriam boas para toda a humanidade, isto é, para o bem-comum. Terá concluído que não. E, portanto, em nome do bem-comum, opõe-se à eutanásia. E nós, portugueses, também. A tradição portuguesa e católica é, portanto: não à eutanásia.

É chocante - fracturante -, por isso, que apareçam agora uns intelectuais, a pôr em causa séculos (nalguns casos, como o aborto, milénios) de observação e ponderação por parte da Igreja Católica (e dos portugueses que, no caso do Japão, no início, eram uma e a mesma coisa)  e queiram introduzir na nossa cultura uma prática que ela há muito ponderou e rejeitou, concluindo não ser favorável ao bem-comum da humanidade.

Andamos para trás, a reinventar a roda?

32 comentários:

zazie disse...

Intelectuais?

A primeira cretinice é o status que esses idiotas atribuem a eles mesmos.

zazie disse...

E eu até conheço pessoalmente alguns.

A que título um bacano escardalho que faz BD é chamado ao caso ou a sua opinião serve para alguma coisa?

Na volta temos é a síndrome de esclerose nacional

marina disse...

bom , há muito ponderou é como quem diz. se não estou em erro , em 1960 a esperança média de vida era de 64 anos... o problema da eutanásia é um problema "moderno" , deriva de nos quererem fazer imortais aqui , na Terra :)

o medo da morte não faz sentido.

zazie disse...

Realmente- é mesmo isso. Temos todos de cumprir estatísticas.

Quem não cumprir leva um empurrão.

zazie disse...

O medo da vida e a acedia da vida é que não faz sentido.

Ou não devia mas a católica aqui és tu. Eu sou apenas a do senso comum sem muita água benta.

zazie disse...

A acedia era o maior pecado na Idade Média.

Hoje em dia passou a um direito que deve ter ajuda colectiva.

Depois queixam-se que os terceiro-mundistas tomam conta disto e que anda tudo cheio de chiliques efiminados.

zazie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
zazie disse...

Engraçado é como nem é preciso esperar muito para assistir a estes golpes de circo chen.

Começam com a treta de colocarem isto em nome pessoal- "eu não tenho direito a matar-me"? pergunta idiota que nada tem a ver com legislar para os outros e obrigar os médicos a praticarem a eutanásia.

Daí a pouco a coisa chega onde sempre esteve- é para despachar velhos porque nos anos 60 as pessoas morriam aos 60 anos e agora andam a durar demais e isso é chato para os jovens que nem encargos querem com filhos, quanto mais com pais ou avós.

marina disse...

mas o que é que o tédio , a tal de acedia ,tem a ver com a eutanásia ?


https://en.wikipedia.org/wiki/Acedia

sempre houve lânguidos e preguiçosos e deprimidos , muitos deles só para chamar a atenção e chatear o próximo , não por vontade de morrer :)

zazie disse...

Essa da média de vida ser de 64 anos nos anos 60 é cá uma cretinice prot de tal ordem e bacorada ainda maior que devia era ser apagada.

Eutanásia para se morrer mais cedo. A segurança social agradece e a juventude da misantropia e das causas dos animais domésticos também

zazie disse...

Tu disseste aí que as pessoas andavam a durar demais e que isso era ter medo da morte.

Se já há lei a permitir eutanásia por estar chateado da vida, então a acedia tem a ver com quê?

zazie disse...

Acedia é não glorificar a vida como um dom de Deus.

Eu não tive educação católica. Quem a teve foste tu nos irmãos maristas.

Se calhar, felizmente que a não tive porque assim também não tenho esse tipo de ressabiamento.

zazie disse...

Acedia é falta de estímulo vital.

A eutanásia ajuda quem tem falta de estímulo vital, uma vez que já existe apenas e exclusivamente por isso.

E em nome do mito de ficar bem no retrato do "eternamente jovem e produtivo".

Quando deixa de ser jovem e produtivo está a mais- passou a ter uma vida "sem dignidade".
È coisa que incomoda e é bom que se feche nos lares e ajude a despachar para não haver culpa familiar

marina disse...

parece que o aumento da esperança média de vida está relacionado com montanhas de doenças deveras incapacitantes , daquelas de acamados cheios de escáras e a babarem-se todos . e daquelas com tratamento hiperagressivos . é só isso.

zazie disse...

Mas a eutanásia afinal é para esses ou é para os tais casos de acidente que pode acontecer a qualquer um.

Um acamado só tem escaras se não tiver um colchão apropriado que até a Santa Casa empresta.

E se não tiver quem lhe faça a higiene e o vire.

O que é que um acamado tem a ver com a bondade da eutanásia ou com depressivos.

Gente a babar há-a de sobra, até os que se babam com merdas destas.

zazie disse...

Mas ainda bem que, sem quereres, levaste a conversa para onde eu tinha partido.

Porque sei que a motivação principal é essa.

Há uma geração que não quer trabalho nem sequer ter de cuidar da família. E recusam-se entender que a velhice é algo natural e que só os merceeiros de juventude eterna a vendem como uma coisa igual a puberdade.

E digo isto porque conheço quem assim fale. A imbecilidade de acharem que podem controlar tudo até ao fim.

Depois têm nojo quando vêem os que não controlam o corpo e nem se apercebem que antes disso já eles próprios estão mentalmente como hão-de ir.

zazie disse...

O alzheimer nada tem a ver com aumento de esperança de vida. Nem sequer é doença de velhice ou degenarativa.

É um prião que entra sem que se saiba como. E entra até à nascença porque a maior parte deve ser hereditária.

Incomoda-me falar nisto porque tenho aqui ao lado a minha querida alzheimaradita de tia que ainda as diz todas por mim.

Acho o máximo quando ela diz- "esta gentalha toda daqui para fora".

Acho que vou acabar assim- como ela, a beliscar e a dar murros na cabeça das pretas mesmo que de cadeira de rodas

":O))))))))

Os velhos tornam-se inocentes- se para mais não servissem, servem para que expiemos por eles todos os pecados.

Todos carregamos a cruz e o que é saudável é carregá-la com humor- à Monty Python.

zazie disse...

Só somos inocentes na infância e na velhice. Ou então, se formos como o pobre tolo do Pascoaes.

Não é este o caso da toleima dos avaliadores de qualidade de vida.
Isso é estúpida soberba.

marina disse...

ora :

"A Doença de Alzheimer esporádica pode afetar adultos de qualquer idade, mas ocorre habitualmente após os 65 anos"

http://alzheimerportugal.org/pt/text-0-9-30-14-a-doenca-de-alzheimer

zazie disse...

Vens agora ensinar-me o que é o alzheimer.

Está calada porque já li e comprei papers e estou a par.

Estupidamente diz-se que ocorre mais tarde pela simples razão que demora muito a desenvolver e quando as células estão mais velhas e se renovam mais dificilmente é óbvio que aparece.

Não digas asneiras e nem vou ler mais porque já expliquei que sou cuidadora de quem tem e já vai nos 96 anos.

A minha mãe tem 98 e está fina de cabeça mas não vê nem ouve- a autonomia serve-lhe para pouco.

De qualquer forma ninguém vai para lares porque se as pessoas procriam é bom que seja para educarem os filhos e não para se descartarem de tudo na vida, a começar pela moral que nem têm para transmitir.

Agradeço-te que não comentes mais nada acerca do alzheimer porque me posso passar e vai doer.

zazie disse...

Agora íamos despachar velhos para não ficarem com alzheimer.

C'um caraças. E anda esta gente na escola católica para depois saírem e ficarem assim- ateuzinhos fariseus e materialistas egoístas que mete dó.

zazie disse...

São os novos hunos. Despacham velhos e despacham tudo para marinharem. Acham que o mundo lhes deve tudo pela simples razão de terem nascido depois.

zazie disse...

Nestas coisas sou como o PA. Não deve haver artigo científico e paper que desconheça acerca do alzheimer. Informo-me sempre cientificamente de tudo para não repetir imbecilidades e estar preparada.

zazie disse...

Só para corrigir.

As pessoas não duram mais por tomarem remédios. Duram mais por uma mera questão genética e sempre foi assim, quer fosse nos anos 60 do século XX ou do do século IV antes de Cristo.


A minha mãe tem 98 anos e não toma um único remédio. Nunca tomou- tal como a minha tia que vai nos 66.

E o facto de ter deixado de ver ou ouvir não a impede de comunicar porque lê se escrevermos com o dedo dela.

E depois ainda gosta de esnobar e responder em francês ou alemão e dizer que felizmente não é analfabeta e que tem muito com que se entreter.

As pessoas doentes tomam remédios desde o berço- os que nem precisam.
O resto é de genes, mais nada.

Ninguém está a mais por ter bons genes.

zazie disse...

nos 96 e não 66. É um ramo da família que sempre foi assim. Tanto quanto sei até bisavós e trisavós. São saudáveis. Outros foram mais cedo por mera questão genética também.

Fora isso existem acidentes que acontecem a qualquer um.

Josephvs disse...

O autor quer reinventar a roda sobre o Canada
Os catholicos no Canada têm 2 origens FRANCESA E IRLANDESA

Quando a Louisiana foi vendida... talvez alguns enveredassem para norte.... MANITOBA!

Acadia (New Bruswick Nova Scotia-aqui foram descriminados os catolicos) Quebec conservou a lingua & o catolicismo!

Acadia (French: Acadie) was a colony of New France in northeastern North America that included parts of eastern Quebec, the Maritime provinces, and modern-day Maine

Pedro Sá disse...

Dois erros:

1. A proibição do aborto foi uma moda burguesa do século XIX - não tem nada a ver com os muitos séculos de Igreja Católica. Mas os burgueses tentaram (e por muito tempo conseguiram) reescrever a História de modo a que o seu modo de vida fosse visto como algo que já existia há muito como norma social - o que hoje sabemos ser falso.

2. Vejo aí um double standard descarado, na típica linha tridentina pré-Vaticano II. "Onde somos maioritários, a regra tem que ser a nossa, onde não somos maioritários, a nossa regra tem que ser admitida". Para não falar na lógica medieval do estatuto pessoal etc. etc.

zazie disse...

O,lha filho, já que és de Direito, devias conhecer o Código de Hamurabi para não dizeres asneiras

Harry Lime disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Harry Lime disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Harry Lime disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Harry Lime disse...

Os primeiros francófonos eram católicos, fugidos dos EUA onde o catolicismo estava proibido, e os primeiros anglófonos eram protestantes (suponho que na maioria anglicanos) leais à coroa britânica ("loyalists"), também fugindo à maioria calvinista e independentista que fundou os EUA.

Esta afirmação está factualmente errada. A presença francesa no territorio actual do Canada remonta ao inicio do seculo XVII: a cidade de Quebec foi fundada em 1608...

Tal como a presença anglofona que tambme remonta ao inicio do seculo XVII (as primeiras colonias britanicas, escocesas, foram fundadas na Terra Nova em 1628.

É de assinalar que estes esforços coincidem com os da colonização no que é hoje é os EUA: as colonias no Massachussets (por puritanos), na Pensilvania (por quakers) e na Virginia (por aristocratas ingleses no cultivo do tabaco).

Só houve catolicos nos EUA depois da compra da Louisiana (que não tiveram qualquer impocto) e com a emigração em massa de irlandeses (que sim começaram a fazer mossa).

É verdade que após a independencia dos EUA alguns loyalists emigraram para o Canada mas esses eram na maior parte protestantes porque a presença catolica nas 13 colonias rebeldes era insignificante !

E já agora, alegar que o Jefferson ou o Washigton eram calvinistas não será um pouco... como dize-lo... falso?

Rui Silva