06 julho 2014

uma cultura


Recentemente, falava na televisão um representante do sindicato dos trabalhadores dos impostos. Vinha anunciar que este ano os reembolsos do IRS estavam atrasados. Por causa de uma avaria no sistema informático, explicou ele.
Nesta altura, espontânea e intimamente murmurei para comigo “Que grande patife…”, não sem imediatamente me arrepender e me concentrar na figura do homem. Era um português típico, na casa
dos quarenta anos, falava pausado, com boas maneiras, educado. Provavelmente, eu estava a ser injusto.
A minha reacção tinha resultado de uma observação que a mim próprio ocorrera enquanto ele falava: “Se um contribuinte se atrasar nos pagamentos ao Estado paga uma multa. Se o Estado se atrasar nos pagamentos aos contribuintes paga em desculpas…”.
Afinal aquele homem era uma boa pessoa ou um patife?
Ele continuou, dando mais explicações, para concluir assim sobre o atraso nos reembolsos do IRS: “Infelizmente, o Estado não vai pagar juros de mora”.
“Que patifório…”, pensei eu. E, no entanto, olhando de novo para ele, ele parecia-me uma boa pessoa, uma pessoa de quem eu, se o conhecesse pessoalmente, estou certo seria facilmente amigo.
Continuei a falar para mim: “Se um contribuinte se atrasar nos pagamentos ao Estado tem de pagar juros de mora. Mas se o Estado se atrasar nos pagamentos ao contribuinte paga em «infelizmentes»”.
Seria aquele homem uma boa pessoa ou um patife?
As duas coisas. Na sua esfera privada aquele homem tinha todo o aspecto de ser uma boa pessoa, um bom pai, um homem que todos os dias se levanta de manhã para ir para o trabalho, um homem simpático que há-de ser estimado por colegas de trabalho e no seu círculo de amigos, um homem que há-de querer tão bem aos outros como quer a si próprio, enfim, um português generoso como são em geral os portugueses.
Porém, em cada manhã, quando veste a pele de funcionário público – e de funcionário público com poder sobre os cidadãos – ele torna-se literalmente um patife, um homem capaz de desrespeitar, com a maior naturalidade, a regra mais elementar e milenar de convivência humana, a regra invocada por todas as religiões, mesmo as mais desconhecidas, a regra que por isso mesmo se convencionou chamar “A Regra de Ouro”: “Não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti”, ou, em versão positiva: “Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem a ti”.
Como é que um homem que, em privado, eu acredito ser uma boa pessoa, quando veste a pele de funcionário público se transforma num patife?
Por causa da cultura prevalecente em certos sectores da administração pública portuguesa. Que é uma cultura de patifes.
(Publicado há cerca de um mês no jornal Vida Económica)


Eu vivi num país onde o episódio que relato anteriormente  teria levado à demissão imediata do funcionário que fez o anúncio e dos seus respectivos chefes, que são o Director-Geral do Impostos e o Ministro das Finanças. A opinião pública ter-se-ia levantado em peso no dia seguinte nos jornais, na rádio e na televisão a exigir a demissão dos responsáveis. A questão teria ganho foros de ofensa moral: "Então, eles que estão lá para nos servir, reservam para eles privilégios que não nos concedem a nós?".

Se o meu computador se avariar e eu não puder calcular o valor que devo ao Estado, isso não serve de desculpa para me poupar a multa que é devida pelo pagamento atrasado dos impostos. E quanto aos juros de mora, os contribuintes pagam-nos em euros e não em "infelizmentes".

Não, eu não vou utilizar este episódio para dizer que aquele país (estrangeiro, bem entendido) é que é bom e Portugal não presta para nada. Se considerasse assim, eu tinha ficado lá. Serve apenas para ilustrar uma diferença de culturas. A nossa é uma cultura imensamente permissiva e nada igualitária ou democrática. No fim de contas, os homens do fisco consideram que têm privilégios que não reconhecem a mais ninguém. Democracia, como sinónimo de igualdade, isso é para os outros, não para eles. Eles são à parte, uma excepção.

12 comentários:

Euro2cent disse...

"O olhar do amo engorda o gado."

(é a propósito de o PA voltar a postar, não do fisco ;-)

Anónimo disse...

"um homem que todos os dias se levanta de manhã para ir para o trabalho."

Pois é isso.Bem diferente seria ele levantar-se de manhã para ir trabalhar.

ESte é o segundo capítulo do funcionário público, e já agora ...patife.

atocadolobo

lusitânea disse...

Se calhar até existe prémio de produtividade para quem conseguir devolver a massa mais tarde...

muja disse...

Grande tanga ó PA!

Prove lá isso. Dê lá uma notícia disso nesses países civilizados para a gente ver essas demissões...

Ele comporta-se como um patife porque faz o que lhe mandam. Porque representa, na realidade, um patife, que é o Estado. Que é que queria que ele fizesse ou dissesse?

Ele não se transforma num patife. Transformaram-lhe foi o trabalho numa patifaria.

Euro2cent disse...

> Dê lá uma notícia disso nesses países civilizados

Ah, por acaso, este ano os EUA têm duas belas amostras:

- O IRS andou a chatear especificamente inimigos politicos.

- Um governador (NJ) mandou estrangular uma estrada para "castigar" uma localidade chefiada por um inimigo politico.

Está tudo preso.

(Ahah, queriam. "Just kidding". Não se passa nada.)

Anónimo disse...

Caro PA, A teoria que apresenta,e a conclusão, estariam correctas se, o dito "patife" fosse o responsável pela aplicação ou não de multas, no caso de incumprimento por parte do estado...ele limita-se simplesmente a aplicar a lei, que o impede de fazer. É injusto? é mais do que isso...é imoral! Interroguemo-nos pois porque acontece isto? nunca tanto como agora o cidadão comum (não o que acede a grandes escritórios de avogados...) esteve tão desprotegido na sua relação com o estado.Um amigo próximo, inspector de impostos,confidenciava-me há tempos o seguinte paradoxo, que me escapava...em portugal o fisco nunca perde perante os pobres e raramenmte ganha numa contenda a "ricos"...
Abr,Paulo Barata

Anónimo disse...

Caro PA (Professor Arroja),

Obrigado por ter voltado ao blogue.

Sou um ferrenho e feroz opositor ao catolicismo e nesse sentido as posições do PA sempre me fascinaram.
“Como é possível?” pergunto eu, “alguém inteligente e racional
deixar-se seduzir pelo catolicismo, pela infalibilidade do Papa, por uma das piores formas de dogmatismo, pelo mais infame dos fanatismos?”

Sou distante, racional e objectivo. Tudo tem uma explicação. Para mim o PA nada mais será que um quebra-cabeças. Difícil. Mas, com serenidade, lá encontrarei a minha explicação.

1ª pergunta. Poderá o argumento do PA ser válido? coerente e válido, mesmo em termos católicos?
Eu julgo que sim. Apenas as implicações do argumento e os seus corolários levam-me a deduções bastante diferentes das do PA.

Mas vamos por partes…

D. Costa

Anónimo disse...

Se a liberdade está na obediência, então, e por exemplo, a caixa de comentários do blogue não deveria ser livre de supervisão.

A total liberdade dos comentadores, inclusive para o insulto, ou para a crítica irracional é, corolário do argumento do PA, sem sentido.
Todos os comentários neste blogue deveriam ser sujeitos a censura.
Censura severa digo eu.

Numa cultura católica como a portuguesa faz sentido a censura num blogue?
Eu afirmo que sim; faz todo o sentido.
A experiência confirma a justeza do nosso argumento (meu e do PA).

(…)

D. Costa

Anónimo disse...

Não foi há muito tempo que tive uma experiência, aqui neste blogue, de uma das mais infames patifarias.
Alguém se fez passar por mim e tomou a liberdade de comentar e assinar com o meu nome (D. Costa).

Pensei em comunicar tal patifaria ao Joaquim (que na prática é o proprietário da loja), mas após pensar melhor no assunto desisti.
Afinal de contas estou perante uma cultura católica, uma cultura de batoteiros.

Qualquer católico é, por definição um vigarista, para mim nada há de invulgar nesta constatação.
A troco da redenção e do acto de confissão os católicos, na acção, são por natureza burlões e vigaristas.
Assim sendo perante condições perfeitas de liberdade (tal como uma caixa de comentários) os portugueses, como bom católicos, nada mais fazem senão patifarias.

A minha solução foi simples…deixei de enviar comentários. Desisti.

“Não vou perder mais tempo, nada mais tenho aqui a fazer. Volto quando houver censura” pensei eu.

(...)

D. Costa

Anónimo disse...


Estarei a ser injusto com os católicos?
Talvez.

Kant tinha razão: Nunca poderei viver em paz se for injusto com algum ser-humano. Acredito que a paz interior será o mais sublime de todos os nossos desejos.

Afinal de contas talvez, apenas talvez, haja um punhado de católicos razoáveis, nos quais não haja crueldade.
Posso afirmar que ao longo da minha vida encontrei dois desses católicos.
O PA talvez venha a ser o terceiro. Daí a minha curiosidade em ler o PA.

Eu raramente vejo televisão. Seria incapaz de perder 5 minutos a escutar um representante do sindicato dos trabalhadores dos impostos.
Não sei se o sujeito será ou não patife na sua vida pública ou privada.
Pouco me importa para ser franco.

(…)

D. Costa

Anónimo disse...

Nesse aspecto não me surpreende o PA e os seus tiques católicos (“que grande patife…” diz o PA ao ver televisão).

Como não católico gostaria simplesmente de contribuir para alguma felicidade do PA ao ver televisão.
Se porventura tiver interesse terei todo o gosto em oferecer-lhe 3 filmes em cópia DVD (sempre fui um cinéfilo fanático). Três filmes que me apaixonam.

“Morangos silvestres” de Ingmar Bergman (um filme sobre a mortalidade e a redenção).
“Gertrud” de Carl Dreyer (filme sobre a mulher).
“Dia de Cólera” também de Dreyer (um filme sobre o mistério da Fé).

A minha gratificação seria, obviamente, ler aqui os comentários do PA sobre estes filmes e ouvi-lo discutir todos os detalhes. Julgo que há muito nestes filmes dos temas do PA.

Dará para esquecer patifes e patifarias.
Por alguns momentos…

D. Costa

Anónimo disse...

Caro PA,

O último filme referido chama-se "A palavra" e não "um dia de cólera".
Este sim um filme notável sobre a Fé.
Peço desculpa pelo meu erro.

Cumprimentos
D. Costa