29 novembro 2013

reflexões tradicionalistas - O morgado

O morgado (http://www.infopedia.pt/$morgado)
"A instituição destes vínculos entre a família e o seu património imobiliário desenvolveu-se entre nós a partir dos séculos XIII-XIV e apenas foi extinta no terceiro quartel do século XIX. Foi, portanto, um dos caracteres estruturais da sociedade portuguesa ao longo de vários séculos."
Wikipedia:
"O morgadio consistia num vínculo de terras, rendas ou outros utensílios provenientes de uma determinada profissão, feito pelo respectivo instituidor. Estes bens assim vinculados não podiam ser vendidos nem de outra forma alienados, cabendo ao respectivo administrador (o morgado) o cumprimento das determinações do instituidor, o usufruto do morgadio e o gozo dos rendimentos proporcionados pelos bens vinculados. As regras de sucessão na administração do morgadio eram definidas pela respectiva instituição. Em geral, sucedia o filho primogénito e, à falta de filhos, o parente mais próximo."
No século 19, foram extinguidos por decreto. Mas extinguidos porquê e com que direito (não é que a questão do direito preocupe o poder, se o pode fazer, faz, logo uma escola de direito o justificará)?

Argumentos:
"Se constituiu, de facto, uma forma de prevenir a desagregação das estruturas económicas que suportavam uma dada classe social, este sistema teve também inconvenientes, até para a própria aristocracia. Em primeiro lugar, era óbvio que fazer do filho varão primogénito o único herdeiro representava um tratamento de desigualdade para os filhos segundos e para as filhas, lançando-os em dificuldades e fazendo com que, muitas vezes, se perdesse o seu contributo e empenho no desenvolvimento do património da família. Em segundo lugar, os morgados eram um entrave ao estabelecimento de novas relações sociais e económicas nos campos; eram um fator de imobilismo, incompatível com as dinâmicas do capitalismo." http://www.infopedia.pt/$morgado 
Acho particularmente irritante o argumento utilitarista do "factor do imobilismo, incompatível com as dinâmica do capitalismo".

É um argumento típico da abordagem utilitarista que faz uma certa escola. Mas o "capitalismo" em si mesmo não carece, nem deve ser uma filosofia política, de mudança da sociedade com visões construtivistas, só carece que a estabilidade de instituições e direitos de propriedade, e não é a eficiência que justifica o eu atropelo por considerações de visão política.

PS: não resisto a referenciar mais uma vez esta palestra, onde se podem ver bem os problemas que os chamados austro-libertarians têm com a Escola de Chicago que eu denomino de eficientista, dada até a usar tal critério para formar princípios de direito e justiça - um mal terrível que tem feito ao liberalismo:
The Chicago School: Libertarian or Jacobin? | Joseph T. Salerno
http://www.youtube.com/watch?v=Rf75CpWaQ_Q

Podemos ver os argumentos utilizados: a desigualdade e por isso o igualitarismo tem ser forçado, ou  o "impediam outros de desenvolver património da família". Bem a divisão forçada, a maior parte das vezes implica sim o desinteresse de todos no património, objeto de disputas ou desleixo e depois venda dessa património para resolver essas disputas. Por outro, o facto de existir um processo seguro e previsível de sucessão do património colocava a responsabilidade de dela cuidar, e de cuidar de alguma forma do resto da família, nem que seja como ponto de reunião e suporte para tempos adversos.

 Na wikipedia, argumentos opostos são utilizados:
"O morgadio difundiu-se como um forma de contrariar o empobrecimento das famílias devido às sucessivas partilhas, servindo, assim, para manter o seu ramo principal com o suficiente estatuto económico-social. "
 E depois diz:
"Uma das razões que levou à sua extinção foi o empobrecimento dos filhos não primogénitos."
Percebe-se a confusão. Os argumentos adaptam-se à realidade da força do poder. Os juristas são especialistas nisso, esmagados pelo processo legislativo incerto, que subverte a própria ideia de direito, conseguem justificar a cada altura o que está na altura. Podiam resumir assim: se o legislador faz, tinha de fazer, nem que faça o contrário. E volte ao ponto de partida.

Alexandre Herculano é bastante honesto na análise da questão embora venha defender o seu fim, mas analisa as várias vertentes do que está em jogo. Pode ser lido nos seus opúsculos aqui:

http://www.gutenberg.org/cache/epub/17177/pg17177.html:

III *Abolição dos vinculos* O pró e o contra
IV *O principio vincular considerado na sua legitimidade*

Esta passagem resume a questão de direito:
"Na verdade os instituidores de morgados tinham o direito de transmittir a propriedade de que livremente podiam dispor com as condições que entendessem; mas as consequencias que d'ahi se deduzem estão longe de serem incontestaveis. Se admittis a doutrina que apenas estriba o direito de propriedade nas leis positivas, é evidente que ellas podem modificar, restringir e até annullar esse direito."
E
"Comtudo a legitimidade da successão nos vinculos, como em outra qualquer propriedade, estriba-se forçosamente ou na lei civil revogavel, ou no direito natural da familia."
Pois, como em certa escola, obviamente fundada na vontade geral, armadilha em que até muitos liberais caiem, o direito de propriedade é uma manifestação positiva da sociedade e não um direito natural auto-evidente, necessário a conceder a cada pessoa, a sua dignidade própria, necessária à sua próprio sobrevivência autónoma, a partir do qual, sim, agora, pode construir vínculos de cooperação social com os seus semelhantes, e não, ao contrário; a sua vivência ser sempre, uma espécie de concessão da vontade geral. Se vamos pelo caminho da propriedade como um direito positivo, nada poderá escapar a esta. Tudo é alterável á sua boa vontade. E é isso que o estado moderno persegue.

Mas ainda que passada esta dúvida Alexandre Herculano refere que mesmo aceitando o direito de propriedade como natural o morgadio tem dificuldades e só poderá talvez justificar-se num qualquer "direito natural da família".

Sim, em toda história da existência humana, a unidade social e legal era a família (e o conceito era estendido, incluía relações de não-sangue, posses físicas, etc), não o indivíduo. É o estado moderno que procura individualizar a sociedade, e o estado social, como argumento muitas vezes, potencia essa individualização até um futuro visionado por Aldous Huxley. Dizer que é o capitalismo que o faz é não perceber que o capitalismo trata de relações de cooperação, mas é o poder que tem vindo a formatar sob que forma estas podem estar configuradas, ao mesmo tempo, que tudo tira e tudo concede ao indivíduo. Em especial liberta-o da necessidade do estado-social-providenciado-pela-família que o obrigava a relações mais duras de hierarquia e deveres. O amor faz a família, mas a necessidade de sobrevivência e de aceitação social (para o negócio, crédito, etc.) também. Em relações naturais, sem a presença positiva do Estado, as relações sociais tendem a ser reguladas por decisões de inclusão ou ostracismo. E nessas relações, o nome e prestígio colectivo da família não só contavam como existiam responsabilidade e consequências colectivas.

Alexandre Herculano no final, utiliza o argumento que sendo uma relação de propriedade, o vínculo parece ser meio-propriedade, entrando em contradição.

A mim parece-me que quem tem propriedade pode doá-la a quem quiser, e quem a recebe pode recusá-la. A seguir fica a questão da condição de não-venda, ficando o usufruto. Tal como o vejo, mas é tema a explorar, quem a recebe podendo recusar ou aceitar a condição escrita em testamento, o morgado é possível de replicar com a utilização de um "trust" que replique a condição de usufruto, para a linha de sucessão, escolhida por quem recebe e aceita o morgado.

O que quero dizer ainda de forma intuitiva, é que analisando a questão de direito civil ao pormenor, creio que não existem razões para a instituição do morgado ter sido abolida. Não que a inspiração de pendor liberal-construtivista da altura alguma vez tivesse preocupada com purismo de direito e ainda menos com a tradição. E assim foi abolido na mesma génese de todas as alterações que atacaram os costumes e relações tradicionais, e que entravavam a visão do estado iluminista e necessariamente centralizado.

PS: Assim, a abolição deste tipo de costume e relações, assim como por exemplo, a inclusão do casamento no código civil, para mais tarde o destruir por completo, faz parte da movida do estado moderno até à abolição total de qualquer resquício de relações naturais. Começou por ser um projecto conservador na verdade, mas os tradicionalistas parecem identificar e intuir a armadinha em que consistiu legitimá-lo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não é difícil concordar consigo. Em rigor não deveria ser por imposição legal que tal instituto haveria de desaparecer. (Essa imposições legais – como o salário mínimo – são sempre intromissões estatais, portanto abusivas, na ordem “natural” das coisas).
A questão é sempre a da liberdade. Num caso, a liberdade do assalariado pretender a relação laboral nas condições em que ele e o empregador a pretendem estabelecer. O Estado nunca se deverei “meter” enquanto não houvesse ameaça à liberdade de cada um: a de contratar e a de cumprir o contratado.
O caso do morgadio também é interessante. Ele de facto afecta a condição de igualdade dos herdeiros perante o património. O Estado nunca deveria proibir o morgadio. O que o Estado deve impedir é o tratamento ou a pressuposição de um desigualdade entre herdeiros resultante da sequência do nascimento e/ou do sexo. Se o Estado impedir isto mas, no entendo, os herdeiros se entenderem para reconstituir essa desigualdade entre si, se o fizerem em liberdade, porque não?
A questão é que o morgadio é um instituto dos tempos de economia agrária e de inexistência de possibilidade de acumulação pela criação de riqueza. Por outras palavras, a posição social não resulta – nem pode resultar – do exercício em liberdade da capacidade criativa, mas, da posição social. Por outras palavras ainda: o morgadio era um instituto de manutenção da desigualdade.
O morgado também não era o proprietário. Seria, aos olhos de hoje, o gestor designado pela tradição. Os filhos/as segundos mantinham a condição familiar nobilástica.

PS. Considero que a abordagem que tem feito no sentido de demonstrar o modo como as diferenças estruturais entre a religião protestante e a católica apostólica romano-napoleónica têm-se revelado do mais profícuo no esclarecimento das condições do nosso atávico atraso.
Bem haja por isso.
Mas também me parece que esse reducionismo à dictomia “tradição – versus – modernidade/protestantismo” já está a manifestar óbvias insuficiências heurísticas. Não me apraz vê-lo defender um determinado enfoque, tão obstinadamente, que é óbvio que ele já revela muitas incapacidades.

CN disse...

"O Estado nunca deveria proibir o morgadio. O que o Estado deve impedir é o tratamento ou a pressuposição de um desigualdade entre herdeiros resultante da sequência do nascimento e/ou do sexo"

Pessoalmente, não vou concordar que a lei deve formatar compulsoriamente o testamento,impondo essa igualdade.

O que não quer dizer que moralmente não possa achar errado. Dependerá de cada um e de cada caso.

Euro2cent disse...

Uma busca por "property entailment" traz a perspectiva anglo-saxónica do caso.

Típicamente, os filhos segundos dedicavam-se às armas ou à religião. A manutenção do poder da família compensava a perda de riqueza individual.

Video explicativo recente:
http://www.youtube.com/watch?v=7gxAtIjHwbc#t=5m45s

(Já agora, aqui com a Diana Rigg, qua alguns aqui ainda podem lembrar:
http://www.youtube.com/watch?v=V-I4O2UdTGQ )