13 outubro 2013

obsessiva

José Lopes da Silva disse...
O pressuposto de que estes filósofos não criaram e mantiveram uma família é óbvio e já foi aqui debatido antes. Em todo o caso, é preciso colocar uma questão: até que ponto se pode confundir o interesse "próprio" com o interesse da família? Afinal, um pai de família que procura emprego, negoceia salários ou estabelece preços obedece à mesma lei de oferta e procura que um indivíduo solteiro. A diferença estará no output.

Meu caro José Lopes da Silva,

Este é o comentário que eu há muito gostaria de ter, mas que só agora tive, talvez porque, antes, eu nunca o tivesse sabido provocar. Na realidade, ele dirige-se directamente ao tema que mais me deu que pensar quando recentemente estive na Escócia e reflecti sobre o Adam Smith - que é considerado o primeiro economista - e o sentido da sua obra.

Existem semelhanças e existem diferenças. Estou convencido que as diferenças são muito maiores e muito mais importantes do que as semelhanças, e é sobre elas que me vou concentrar porque é a elas que se dirige o seu comentário.

Existem diferenças que são exteriores ou materiais (v.g., um homem que tem de sustentar a sua família, em princípio,  trabalha mais do que se existisse sozinho) e outras que são interiores ou espirituais, e estas são muito mais importantes do que as anteriores.

Agora, a questão, como lhe explicar estas diferenças do foro espiritual?

Decidi responder ao modo de Cristo, não exactamente com uma parábola, mas contando-lhe uma pequena história familiar, fazendo alguns comentários, e deixando-lhe a si que tire conclusões. Para mim é uma história encantadora e muito gratificante.

O meu filho B. é médico, tem 32 anos e já tem uma família. Há cerca de dois meses mantivemos uma divergência acesa sobre uma questão de saúde. Em várias ocasiões tínhamos falado sobre o assunto, eu como uma posição irredutível e persistente acerca dele, ele com outra, muito mais moderada. Nas ocasiões anteriores, eu tinha sempre falado mais do que ele.

Certo dia, entrou em minha casa com um ar pressionado e, com uma ponta de irritação na voz, disse-me assim: "Por favor, senta aí que eu quero falar contigo. Hoje sou eu que falo".  E eu assim fiz, sentei-me, pela primeira vez, pensei, o filho ia ralhar com o pai.

Ele começou assim:

-Tu és, talvez, o homem mais inteligente que eu conheço. És também uma pessoa muito bondosa. Mas tens de reconhecer que tens também uma personalidade...

-obsessiva..., adiantei-me eu.

-Obsessiva, confirmou ele.

E foi por ali a falar sobre a tal questão de saúde.

No dia seguinte, eu lembrava-me era desta parte introdutória da conversa, e foi sobre ela que reflecti. Em primeiro lugar, foi gratificante ouvir do meu filho que eu era (talvez) o homem mais inteligente que ele conhecia. Talvez ele ainda conhecesse poucos homens ... mas, como quer que fosse, ouvir isto do meu filho deixou-me gratificado.

Logo a seguir, porém, pensei: mas não fui eu que me dei a inteligência. Alguém me a deu.

Mais importante, e muito mais surpreendente para mim, foi a questão da bondade. Esta de eu ser um homem muito bondoso era uma verdadeira novidade. Mas, a ser verdade, não tinha sido eu também a dar-me a bondade.

Quanto à questão do carácter obsessivo da minha personalidade, sim, eu sei que sou um homem muito convicto, quer quando estou certo quer quando estou errado, e que, por isso, facilmente me torno obsessivo. Até a mulher dele (minha nora) já tinha notado esta característica da minha personalidade, acrescentou ele. E ele  respondeu-lhe que sempre me tinha conhecido assim

Havia uma combinação feliz daqueles três qualificativos que ele me atribuiu, segundo a qual eu poderia ser um homem inteligente e obsessivamente bondoso (embora sujeito a errar). Mas, se eu era assim, não fui eu que me fiz assim. Alguém me fez assim.

Quem?

Muitas pessoas. Mas na questão da bondade, que foi a que mais me surpreendeu, ele e os meus outros filhos contribuíram decisivamente para que eu me tivesse tornado o homem  bondoso que ele agora reconhecia em mim.

18 comentários:

André Silva disse...

Caro Sr. Pedro Arroja,

E qual é a sua opinião sobre a visão de que mesmo um acto que o senhor consideraria altruísta é, na realidade, um acto egoísta?

Um homem sustenta a sua família ou proporciona uma educação aos seus filhos não porque ele é altruísta, mas precisamente por ele ser egoísta, por isso proporcionar-lhe uma gratificação pessoal.

zazie disse...

A diferença há-de estar no facto de uma família sempre ser mais gente que um euzinho a olhar para o umbigo.

A outra está na má-fé da impossibilidade de se ser altruísta - que foi o que tu acabaste de dizer.

Teoricamente as diferenças são muitas mais, a começar pela abissal em que a sociedade é um colectivo que começa na família e não um conjunto de euzinhos que só não se matam por existir Estado (como justificou o vosso primeiro teórico da coisa no Leviatã).

rui a. disse...

Este modo de colocar as coisas em relação à família nuclear - pais e filhos - é completamente fora da realidade. Nenhum pai ou mãe normais fazem contas de somar e subtrair quando desempenham as suas funções familiares naturais. Não se tratam de relações de «altruísmo» ou/e «egoísmo», mas do desempenho de uma função natural que até inúmeros animais irracionais não desconhecem. Quem não compreender isto está fora do assunto.

zazie disse...

Tudo bem. Mas evitar esses encargos e defender que a felicidade se baseia na satisfação meramente pessoal, então é o quê?

zazie disse...

Quem é que defendeu que a sociedade progride por instinto egoísta?

A questão é esta. A família é um exemplo de responsabilidades que contrariam a tese do progresso por somatório de ego+ismo individual.

A Rand defendia o aborto assim- é um caminho para a felicidade e livra de encargos.

A negação do Bem Comum assenta neste pressuposto que vem de Hobbes.

zazie disse...

Há uma gigantesca diferença entre o eu como motor de tudo e a ideia da família como o núcleo mais pequeno dela.

Porque o euzinho tem como meta a sua única vida. Daí os liberais até serem contra as heranças.

Enquanto que a noção de família não é apenas a que se constitui- são todas as suas ramificações e o que fica depois da nossa morte.

A noção de família coloca a felicidade num tempo longo que o eu não controla.

A ideia do egoísmo como motor de tudo, funciona apenas no curto-prazo, é utilitária ao ponto de poder sacrificar o futuro em função do tempo de vida de cada euzinho.

zazie disse...

Quem escreveu a fábula das abelhas não foi Aristóteles, ia jurar...

né?

Portanto, o texto do PA é uma negação dos fundamentos liberais.

Refuta-se com argumentos liberais, em os tendo. Não em negando a diferença entre uns e outros.

Vivendi disse...

Por exemplo os líderes políticos não sabem o que é o bem comum:

A pensão mais baixa de sobrevivência está abaixo de 200 €. A pensão mais alta de uma subvenção política está quase em 10000 €. A diferença é de quase 5000% (contas feitas à moda de merceeiro).

rui a. disse...

Zazie,

As relações de paternidade e de filiação não são de natureza económica, nem política. Não vejo como é que o liberalismo as pode questionar. Se é por causa do individualismo, este, para o liberalismo clássico, é uma unidade de medida para a natureza da sociedade política e não das comunidades sociais. Nenhum liberal lhe negará a importância da cooperação entre indivíduos, e dos laços sociais e resultados institucionais que daí resultam. Se é por causa do «self-ownership» da Rand, traduido excessivamente por «egoísmo», também não vejo em que medida é que o interesse individual, que é, de facto, o mais potente motor de realização humana, pode colidir com os sentimentos de paternidade e filiação. São coisas absolutamente diferenciadas, e, embora se possa alegar que qualquer indivíduo se satisfará na sua descendência, ninguém tem filhos para se satisfazer, sem mais. Nestas coisas, a auto-satisfação tem outro nome, e não costuma dar filhos. Antes pelo contrário...

zazie disse...

eheheh vendo as coisas sob esse prisma realista, é verdade. As diferenças teóricas é que são fantasias.

Aquilo que poderá ser diferente seria apenas o incentivo a uma coisa ou outra e a questão das heranças.

Se está recordado, foi também apenas neste plano prático que eu tive há séculos um debate com o Carlos Loureiro, por defender a boa da possibilidade de um pai desbaratar tudo com amantes pois heranças não interessam aos atlas de investimento.

zazie disse...

Mas, teoricamente a diferença existe e existe na noção de felicidade. Se v. acha que felicidade é sempre egoísmo, isso negaria a boa fé perante quem o faz por magnanimidade.

Ainda que a magnanimidade não seja nunca mera questão familiar.

O problema do texto do PA é misturar as duas coisas.

A família com base da sociedade é uma noção que se opõe ao pressuposto do do colectivo como somatório de euzinhos.

Do ponto de vista da moral, idem. As teorias separam-se aqui.

Agora, na prática, como v. diz, ter família todos temos, para o bem e para o mal- excepto os enjeitados

":O)))))

zazie disse...

A lógica utilitária acaba, a dizer o mesmo que o PA diz às avessas- que o egoísmo é o mesmo que o seu inverso.

Não é. Mas não é por exemplo de construir família que se separam.

Há formas de viver que têm apenas o benefício pessoal como meta.

Há outras que se realizam por abstracções a que servem. o facto de se retirar prazer de ambas não torna o magnânimo um mero egoísta.

Era isto que queria dizer porque acredito na boa-fé e nos cambiantes de possibilidades humanas.

zazie disse...

ehehehe agora é que li a boca onanista

eheheheh

":O)))))

rui a. disse...

Zazie,

A cooperação é a base da sociedade. Cooperação entre quem? Entre indivíduos, obviamente. Só eles possuem cabeça para pensar e tronco e membros para agir. Qualquer liberal lhe dirá isto. Se vc. quiser, poderemos olhar para a família como a primeira organiação social de cooperação humana. Tem algum mal ou nega a natureza da coisa? Penso que não. Mas, obviamente, a natureza dos vínculos familiares está longe de ser meramente contratual. Ela é sobretudo emocional, e por isso mesmo é que não se deixa um casamento ou um filho, como quem rescinde um contrato de compra de uma mota ou de uma casa. Onde entra o individualismo nisto? Em muitas coisas, Zazie, desde logo na necessidade desses vínculos para a sua realização como pessoa, que não é a mesma coisa que «indivíduo», embora não ande muito longe. Depois, há as teorias abstrusas que tentam submeter tudo à filtragem de um só filtro, pode ser, por exemplo, a propriedade, e, naturalmente, assim a coisa não funciona. Nós não podemos olhar para as relações de família como relações de propriedade, como o Rothbard fazia (eu cuido de mim, enquanto o meu próprio dono, tu de ti e os putos, quando forem auto-suficientes, cuidarão deles), que conduzem a labirintos de lógica inultrapassáveis para pessoas normais, ou a conclusões grotescas, que, de resto, o Rothbard, com alguma coragem, não evitava, embora dissesse sempre que elas eram indesejáveis. Indesejáveis, mas possíveis, logo, necessariamente, merecedoras de um outro enquadramento numa sociedade civilizada.

rui a. disse...

O que é mais admirável nisto é que o Mises - que vc. despreza, mas que era um tipo notável e um verdadeiro filósofo da natureza humana, da economia (a mesma coisa) e da história - era um velho senhor aristocrata, um conservador e um visionário (foi ele quem verdadeiramente escavacou, ainda na década de 20, o socialismo), deve estar às voltas na tumba com esta «herança» que dizem que deixou...

rui a. disse...

E o Rothbard tem coisas muito boas, atenção. Mas é como economista e não como filósofo de porra nenhuma.

José Lopes da Silva disse...

"Existem semelhanças e existem diferenças. Estou convencido que as diferenças são muito maiores e muito mais importantes do que as semelhanças"

Na verdade, bastaria eu ter pensado/avançado um pouco mais antes de deixar aquele comentário. [No ponto em que a diferença está no output.] O pensamento moderno é dialógico, divide a realidade em esferas/partidos/partes, explica sempre uma parte da verdade, e portanto a lei da oferta e da procura (aqui tomada como mero exemplo do pensamento moderno) limita-se a explicar uma parte da verdade, também. O resto da verdade é... "institucionalizado". E tudo isso também já foi debatido antes.


zazie disse...

Rui: eu não desprezo o que não conheço- o tal de Mises praticamente nem li.

Li as cenas das bolhas e do padrão ouro. Pouco mais.

Eu apenas tentei outra coisa- entender a partir de quando se formam as teorias liberais. e sim, é coisa do mundo moderno, começa com Hobbes e segue por efeito do iluminismo. Tem como base uma série de dogmas utilitários e o homo economicus como fim.