09 setembro 2013

a ética da responsabilidade (rand e o objectivismo)



Tenho seguido, com a maior atenção, a exposição do Joaquim Couto sobre Rand e o Objectivismo, agora pontualmente refutada pelo Pedro Arroja. Esclareço, como ponto prévio, que a ideia culto de seita que acompanha a obra e a pessoa de Ayn Rand me desagrada, assim como também acho muito frágeis os fundamentos da sua dita “filosofia”. De Rand gosto de algumas das suas conclusões, não obstante muitos dos pressupostos de que parte. Como romancista, apesar de frequentemente dizer (para espicaçar os seus inúmeros admiradores) que ela é uma espécie de Paulo Coelho dos liberais, admiro o The Fountainhead, que considero um romance maior e a sua obra mais fulgurante, gosto do mito de John Galt, não obstante ter o Atlas como uma novela menor, e acho o pouco que sobra profundamente desinteressante. Enquanto ensaísta, aprecio-lhe alguns textos sobre as virtudes do capitalismo, mas acho francamente primária a sua defesa do “selfishness”, o nó górdio da sua “filosofia”, enquanto motor da humanidade e da cooperação humana, ainda que possa entender a mecânica do raciocínio.

Ora, o primeiro grande problema do Objectivismo está exatamente no mecanicismo dos seus postulados. Nada daquilo existe na vida real, como, de resto, as virtudes (defeitos?...) ensimesmadas de Howard Roark ou de John Galt não são susceptíveis de serem encontradas numa mesma pessoa. Roark e Galt são mitos do universo criado por Rand para explicar algumas das fatalidades que sucedem aos homens, mas não são mais do que ideias absolutas de uma realidade que é bem mais complexa do que tipos simplificados de carácter e moralidade.

 Depois, a exaltação da racionalidade e do homem, como se eles fossem quase deuses omnipotentes. Aqui, Rand bebe numa certa tradição racionalista liberal, que vai da Enciclopédia a Mises e Rothbard (ainda que estes racionalismos não sejam estrictamente todos iguais), que deixa de fora a crítica liberal de Hayek e de Popper ao racionalismo, crítica essa que me parece bem mais sensata. Na verdade, os racionalismos de Mises e de Rothbard aproximam-se mais da tradição cartesiana francesa do que do racionalismo iluminista inglês, conservador e céptico, por definição. Ora, enquanto a primeira exalta a razão como fonte de descoberta de todas as verdades e leis da natureza, a segunda considera-a uma fonte de conhecimento e de aprendizagem, mas também o dom que nos permite compreender as nossas próprias limitações.

Rand levou ao extremo a defesa da racionalidade humana, transformando os homens, por esse facto, em quase deuses. Nesta perspectiva das coisas, a ética não é mais do que “uma necessidade objectiva, metafísica, para a sobrevivência do ser humano” (Rand), com começo e fim no próprio homem e não em algo que o transcenda (“Para a ética objectivista, a vida humana é o padrão de valor, e a vida o propósito ético de cada indivíduo”, idem). Não por acaso, o Objectivismo entusiasmou algumas correntes do Satanismo, entre elas a de Anton LaVey, como, em tom de provocação, aqui deixei em forma de post há umas semanas. É que, para este Satanismo mais intelectualizado, que é herdeiro de Crowley, a “besta” mais não é do que o homem absoluto, uma potência que não reconhece ninguém sobre si, desde logo, Deus, por este ser uma criação humana com o fim único de o escravizar e reduzir. O “Anjo Caído” é, pois, o mito do homem plenamente consciente de si mesmo, que não aceita a “tirania” que lhe é imposta pela submissão a um Deus inexistente. Isto lembra alguma personagem do universo randiano?...

A coisa complica-se seriamente porque esta dimensão da racionalidade, embasada na ideia de “selfishness” como motor das relações sociais, destrói a ideia principal da sociedade liberal, sobre a qual tenciono escrever nos próximos tempos, que se encontra praticamente ausente do discurso racionalista extremado: a ideia de responsabilidade.

Para Rand, o homem só é responsável perante si mesmo e na medida em que não prejudique a propriedade dos outros homens. Rothbard afirma o mesmo, e chega até a defender que, por exemplo, uma promessa contratual violada não fere a ética libertária, por não existirem aí direitos de propriedade danificados. Ou que, nesse mesmo plano, um pai não pode ser responsabilizado coercivamente pela tutela e educação dos seus filhos, porque, sem o seu consentimento, teria os seus direitos de propriedade agredidos por alguém (o filho) que sobre eles não dispõe de um título legítimo de propriedade.

Este racionalismo e esta “ética” libertária, de que Rand é um dos primeiros arautos, põem definitivamente em causa a base da sociedade liberal: a ética da responsabilidade pela qual um indivíduo livre, numa sociedade livre, não é somente responsável por si mesmo, como não deve ser apenas sujeito a uma reprovação moral se se furtar ás suas responsabilidades naturais e contratuais. A condenação da irresponsabilidade deve ser objectiva e plasmada em normas de direito, preferencialmente consuetudinárias, mas legisladas, se preciso for. Numa sociedade liberal, a liberdade e a responsabilidade são expressões sinónimas que nunca podem ser dissociadas, sob pena de nenhuma delas fazer qualquer sentido.

34 comentários:

Anónimo disse...

Caro Rui,

Obrigado pelo sua reflexão.
ABÇ
Joaquim

rui a. disse...

Obrigado, Joaquim.

Abraço,

zazie disse...

Claro que a irresponsabilidade deve ser condenada.

Quem diz o oposto em relação a um filho é um psicopata.

CN disse...

"Rothbard afirma o mesmo, e chega até a defender que, por exemplo, uma promessa contratual violada não fere a ética libertária"


Rui, não é "ética" no sentido "moral" mas "ética" no sentido de filosofia do direito. Há muito mais aí para explorar.

Quanto ao exaustivo exemplo do abandono, toda a civilização convive com pais que abandonam crianças em instituições, coisa corrente. Essas análises pudicas... e sabendo que em nada se está a analisar da imoralidade do acto. Apenas se o acto em si, dentro do pressuposto do direito de propriedade, pode dar azo à utilização de força punitiva.

CN disse...

Apetece sempre perguntar. E então o aborto?

CN disse...

"Na verdade, os racionalismos de Mises e de Rothbard aproximam-se mais da tradição cartesiana francesa do que do racionalismo iluminista inglês, conservador e céptico, por definição"

Muito forçado. Não existe "iluminismo" onde não existe proposta de formatação, muito menos utilizando qualquer aparato coercivo.

Mises tem umas nuances, Rothbard não e não é por acaso que vai buscar os fundamentos a toda a tradição possível acumulada, sendo um dos autores que, quando fora de moda, se esforçou por revelar o melhor da tradição católica milenar.

CN disse...

Rui

Tens aqui um paper do jurista lá do Mises Institute.

Journal of Libertarian Studies
Volume 17, no. 2 (Spring 2003), pp. 11–37

A LIBERTARIAN THEORY OF CONTRACT:
TITLE TRANSFER, BINDING PROMISES,
AND INALIENABILITY
N. Stephan Kinsella*

http://mises.org/journals/jls/17_2/17_2_2.pdf

rui a. disse...

Ok, obrigado,m Carlos. Não sou grande apreciador do Kinsella, mas vou passar os olhos no texto.

Francisco disse...

CN, julgo que o paralelo da tradição racionalista Francesa nos Austríacos não é assim tão descabida. O descartes vai buscar muito da sua obra aos escolásticos, que por sua vez vão buscar muita coisa a aristóteles. É uma tradição racionalista em contínuo, da qual os austríacos descendem. A outra costela idealista dos austríacos é obviamente a germânica de Kant.

A tradição britânica empirista parece estar nos antípodas dos austríacos, mas mesmo assim o Rothbard parece ter o Herbert Spencer em muito boa conta, por isso não sei muito bem os detalhes da influência britânica.

zazie disse...

O Aristóteles era empirista.

Vejam lá como as coisas são. A escolástica a ir buscar racionalismo a quem foi o oposto.

zazie disse...

A influência, já estou farta de o repetir- foi pelo Hobbes.

Porque estes neotontos nem filósofos são- são ideólogos economicistas.

zazie disse...

Do mesmo modo foi da obra do Hobbes que passou aos enciclopedistas franceses.

zazie disse...

De resto, o que o Francisco disse está mais que certo.

Vem do racionalismo cartesiano e depois dos esquemas apriorísticos do Kant.

Eles são neo-kantianos.

Uma aberração que ainda hoje perdura nos pseudo-filósofos alemães.

CN disse...

2CN, julgo que o paralelo da tradição racionalista Francesa nos Austríacos não é assim tão descabida.2

É completamente desajustada e a confusão expressa bem como se deixou passar ou descompreender a tradição reflexiva católica.

Já postei aqui o suficiente para provar isso.

o empirismo na sua versão moderna, aliado ao positivismo legal, sim, tem uma génese protestante e de falso racionalismo e utilitarismo que se confunde com o marxismo e claro o iluminismo.

CN disse...

"A tradição britânica empirista" tal como o empirismo moderno de Chicago têm sido terríiveios para o liberalismo.

Tendem a tratar o ser humano como mecanismo eficientista.

Preferem a cultura protestante e a luz do mundo vindo dos anglo-saxónicos'? ok.

agora querem pegar na tradição austríaca cujos fundamentos vêm da tradição escolástica e medieval, passando pelos católicos franceses não-iluministas - conotados com o absolutismo - e querem pegar-lhe kant é completamente deslocado.

os ingleses fazem a cabeça às pessoas...

rui a. disse...

Carlos,

Onde vê vc. resquícios da «tradição católica» na obra do Rothbard? Primeiro, que tradição católica? Segundo, aonde? Terceiro, se se refere à defesa do direito natural era conveniente perceber-se o que Rothbard quer dizer com isso, que está, a meu ver, a anos luz do que entende qualquer autoridade cristã, desde logo os jusnaturalistas do século XVII e XVIII. Quanto à exaltação da razão em Mises e em Rothbard, bom, é só lê-los. O racionalismo exarcebado da Rand, quase satanista na expressão corrente do termo, não é mais do que uma consequência. Todavia, note bem, eu considero o racionalismo de Mises menos grave do que o de Rothbard, porque neste é um verdadeiro culto de exaltação à potência do homem racional, enquanto que naquele era somente um resquício do positivismo do final do século XIX, que ele aplicou à sua ciência económica para alcançar as conclusões que pretendia. Os danos da coisa são, por isso, bem mais limitados do que em Rothbard.

zazie disse...

Completamente. O Rui entendeu a questão.

O CN não quer entender porque trata estas questões como se fossem dogmas religiosos.

CN disse...

"Onde vê vc. resquícios da «tradição católica» na obra do Rothbard?"

não são resquícios, estamos a falar da escola austríaca em geral, mas a sua historia do pensamento económico pode ser bom sitio, e de resto, o numero de católicos (alguns tradicionalista) a ela associada devia pronunciar alguma coisa.

ver no apriorismo austriaco e o combate ao empirismo e positivismo legal moderno uma especie de reavivar de um confronto que durante o seculo 20 foi dominado pelo factor anglo-saxónico e anti-catolico.

ps- aqui o meu teclado está todo trocado.

CN disse...

"Todavia, note bem, eu considero o racionalismo de Mises menos grave do que o de Rothbard, porque neste é um verdadeiro culto de exaltação à potência do homem racional, enquanto que naquele era somente um resquício do positivismo do final do século XIX, que ele aplicou à sua ciência económica para alcançar as conclusões que pretendia. Os danos da coisa são, por isso, bem mais limitados do que em Rothbard."



ui, coisa grave. o rui está a por em causa toda a a escola Austríaca, a começar com Carl Menger e as suas origem escolástica.

os ingleses dão a volta à cabeça e transformam o método compatível com o cath numa coisa iluminista. a culture war continua.


tudo isto porque o rui não compreende, não assimila o anarquismo, que de resto, é a realidade que o cerca.

CN disse...

Já agora, Rothbard foi sim "O" crítico do hiper-racionalismo de Ayn Rand.

CN disse...

"One of the main contributions of Professor Murray N. Rothbard has been to show that the prehistory of the Austrian School of Economics should be sought in the works of the Spanish scholastics of what is known as the "Siglo de Oro Español" (in English the "Spanish Golden Century"), which ran from the mid-16th century through the 17th century. Rothbard first developed this thesis in 1974 (2) and, more recently, in Chapter 4 of his monumental History of Economic Thought from the Austrian Perspective, entitled on "The Late Spanish Scholastics".(3)"

CN disse...

Jesus Huerta de Soto, claro.

CN disse...

E acaba com:

"Indeed, we could say that the greatest merit of Carl Menger was to rediscover and take up this continental Catholic tradition of Spanish scholastic thought that was almost forgotten and cut short as a consequence of the black legend against Spain and the very negative influence on the history of economic thought of Adam Smith and his followers of the British classical school .

Fortunately, and despite the overwhelming intellectual imperialism of the British Classical School of Economics, the continental tradition was never totally forgotten. Several economists like Cantillon, Turgot and Say kept the torch of subjectivism burning. Even in Spain, in the years of decadence in the 18th and 19th centuries, the old scholastic tradition survived in spite of the typical inferiority complex toward the British intellectual world that was so typical of those years. Proof of this is how another Spanish Catholic writer solved the "paradox of value" and clearly set forth the theory of marginal utility 27 years earlier than Carl Menger did the same."

rui a. disse...

"não são resquícios, estamos a falar da escola austríaca em geral"

Carlos, eu não considero o Rothbard um digno representante da Escola Austríaca. Poderá sê-lo nalgumas abordagens económicas, não duvido, mas está filosoficamente muito distante do resto, como, aliás, o seu discípulo HHH. Por mim, a Escola Austríaca é a herdeira do liberalismo clássico, herança que Rothbard e HHH recusam, como sabe. De resto, valeria somente apreciar o nível das dissensões entre Hayek e Rothbard para se entender o que quero dizer.

rui a. disse...

Carlos,

Sabemos todos as influências da Segunda Escolástica nos pensadores liberais clássicos, e não foram apenas os Austríacos, mas o próprio Locke que travou conhecimento com as suas obras quando esteve exilado nos Países Baixos. Não é isso que está em causa, mas a influência disto na cabeça caótica do Rothbard. A meu ver, foi pouca.

rui a. disse...

"Já agora, Rothbard foi sim "O" crítico do hiper-racionalismo de Ayn Rand."

Mas a pobre da Senhora não era mais do que uma sua filha bastarda...

rui a. disse...

"tudo isto porque o rui não compreende, não assimila o anarquismo, que de resto, é a realidade que o cerca."

Ora, agora é que começamos a falar. Se vc. quiser debater isto comigo, até mesmo publicamente, numa conferência, por exemplo, quando eu aí estiver, acho que teria interesse.

CN disse...

"Carlos, eu não considero o Rothbard um digno representante da Escola Austríaca"

Ahah boa piada

CN disse...

"Mas a pobre da Senhora não era mais do que uma sua filha bastarda."

Que grande confusão...

CN disse...

inglesismos...

rui a. disse...

""Carlos, eu não considero o Rothbard um digno representante da Escola Austríaca"

Ahah boa piada"

E olhe que não sou o único. Ou será que quer esquivar-se às apreciações recíprocas entre Hayek e Rothbard (e, já agora, o HHH)? Ou será, ainda, que Hayek é que não era um austríaco? Consta que este último, das vezes que o primeiro perorou na MP, se punha a ler ostensivamente o jornal, tal a consideração intelectual em que o tinha...

CN disse...

Rui

Hayek é que não está totalmente na escola austríaca. Isso é um acepção comum. Embora sejam nuances para académicos.

Toda a sua produção na economia pura é exclusivamente mental, como deve ser e só pode ser para provar acepções universais económicas.

rui a. disse...

"Isso é um acepção comum."

É um revisionismo histórico, meu caro, da autoria dos círculos rothbardianos e ligados ao HHH. Na verdade, já quase o "expulsaram" da tribo, o que é, antes do mais,motivo para galhofa entre pessoas com bom senso. Como diz o outro, o Hayek era de esquerda e os verdadeiros combatentes da liberdade são o Rothbard e o HHH.
Tenha lá paciência, mas já deixei de coleccionar cromos da bola há muitos anos e este espírito de seita fundamentalista não me anima.

CN disse...


Essa nuance é consensual. Falamos da componente económica. E na economia pura seria dificil Hayek retirar-se a ele próprio, mesmo que tenha tentado não estar demasiado conotado com Mises, apesar de ter lá ido inspirar-se, faltando aquin ou ali, referenciá-lo. Mas faz parte das coisas. Pormenores. A ser discutido a nível de detalhe académico que pouco interessará.