03 abril 2013

A boa recessão




Estávamos em 2009, período pós-falência do Lehman Brothers e do rebentar da bolha imobiliária nos EUA. Um grupo de amigos almoça num restaurante de praia no Dubai. Um deles recebe um telefonema com uma dica sobre um empreendimento prestes a entrar em pré-lançamento. Empreendimentos em pré-lançamento consistiam em terrenos vazios com projecto aprovado, mas cujos edifícios só estariam prontos dentro de 3 ou 4 anos. Como em Portugal, os espaços nestes edifícios eram vendidos com desconto face a projectos terminados. Essa pessoa pergunta o preço por metro quadrado e reserva de imediato três apartamentos. Comunica à mesa a oportunidade e reserva mais cinco para os amigos. Um telefonema ao banco e passado alguns minutos o contacto na imobiliária já teria recebido a garantia bancária para a entrada e para o empréstimo. Apesar de terem acabado de contrair uma dívida de várias centenas de milhares de euros, abandonam o restaurante com a mesma tranquilidade de sempre.  Uma excentricidade de classe alta? Não, era uma situação normal de uma classe média em ascensão. Provavelmente, quando se encontrassem outra vez no próximo fim-de-semana já teriam vendido os apartamentos comprados naquele dia. Mesmo descontando a comissão do banco e da imobiliária, teriam feito um bom negócio vendendo a alguém que não recebeu a dica tão cedo. A rotação do imobiliário criava tanto negócio para as imobiliárias que existiam quase tantas imobiliárias com empreendimentos. Trabalhadores qualificados abdicavam dos seus empregos para abrir agências imobiliárias. Porteiros do subcontinente Indiano, com salários de 200 euros, faziam 2 mil por facilitarem transações e darem dicas de apartamentos à venda.  Apesar de haver muitas, as agências imobiliárias tinhamfilas de espera de investidores com poucos contactos, mas com vontade de entrar no negócio.

O rebentar da bolha imobiliária nos EUA e a falência do Lehman Brothers apenas reforçou a convicção de que o mercado imobiliário no Dubai era diferente. Afinal, se tinha resistido ao descalabrado financeiro internacional, resistiria a tudo. A noite, no entanto, contava-nos uma história diferente. Nas zonas mais ocupadas da cidade, não mais do que 20% ou 30% das luzes nos prédios estavam acesas. Nas zonas mais remotas, onde ainda se iam vendendo apartamentos em plano, os edifícios acabados estavam às escuras. “Isto é malta que sai muito à noite”, diziam os investidores mais crentes. A verdade era, porém, diferente. Muitos apartamentos acabados nunca chegavam a ser ocupados. Os donos não os compravam para morar e como não os mantinham mais do que algumas semanas antes de os venderem, não se preocupavam em alugá-los. O parque habitacional da cidade ultrapassava bastante a população e muito mais estava planeado. Estavam a ser construidos apartamentos que fundamentalmente não geravam qualquer benefício económico. Recursos e mão-de-obra estava a ser usada sem gerar qualquer benefício. Eventualmente, a economia teria que regressar aos fundamentais. 

Eis que chega o Verão de 2009. O Verão era tendencialmente um período de paragem no mercado. Como muitos investidores saíam de férias para a Europa para escapar aos 40 graus do Dubai, o número de transações desacelerava. Nesse Verão, congelou. E Setembro não trouxe boas notícias. A bolha tinha rebentado. Ao contrários das expectativas dos investidores o governo, atormentado pela dívida das próprias empresas, não interveio para salvar o mercado imobiliário. Os investidores imobiliários mais endividados abandonaram o país, deixando para trás as dívidas e o risco de cadeia. Muitas construções em plano não chegaram a concretizar-se. Os investidores com casas acabadas, perante a incapacidade de as venderem, decidiram alugá-las. O mercado ficou inundado de imóveis para aluguer. Num ano, os preços caíram 60%. A saída do país de investidores, o desemprego de funcionários de imobiliárias e do sector da construção reduziu a procura de habitação, o que por sua vez baixava ainda mais o preço das casas. Era aquilo que em Portugal alguns chamariam de “espiral recessiva”. Mas esta espiral recessiva tinha um bom motivo para acontecer: era preciso liquidar a bolha e deixar a economia regressar aos seus fundamentais.

Isso aconteceu de forma bem visível. Embora os números oficiais não o digam, a economia do Dubai terá caído mais de 10% entre 2009 e 2010. Foi uma queda repentina e visível. Visível no trânsito, nos centros comerciais e na facilidade com que se conseguiam reservas em restaurantes à sexta-feira à noite. Em 2011, a economia já crescia, onde deveria crescer: no sector transaccionável. O governo do Dubai recusou-se a subir impostos para pagar as dívidas das empresas públicas o que reforçou a confiança das empresas de serviços que se instalam no Dubai para servir os mercados emergentes. Com a queda das rendas e o desemprego no sector imobiliário, estas empresas beneficiaram ainda de custos de trabalho mais baixos. No passado, o crescimento de algumas empresas era sufocado pelo facto de os trabalhadores exigirem salários altos para poderem pagar as rendas inflacionadas pela bolha. Os espaços comerciais também ficaram mais baratos, atraindo ainda mais empresas e beneficiando a expansão das existentes. As lojas de imobiliário nos rés-do-chão foram substituidas por mini-mercados e lojas diversas.

O governo do Dubai poderia ter evitado a queda abrupta do sector imobiliário em 2009-10, bastaria ter lançado alguns impostos e utilizar essa receita para continuar a alimentar o sector. Provavelmente, a queda da economia em 2009-10 teria sido inferior, mas estaria a apoiar um sector cujos fundamentais económicos revelavam estar sobredimensionado, limitando o crescimento do sector dos serviços. Se o tivesse feito, a queda não teria sido tão abrupta, mas provavelmente a economia ainda estaria a cair, porque não teria sido apenas o sector sobredimensionado a cair, mas também nos sectores cujos impostos estariam a subsidiar a morte lenta do imobiliário.

Chegados a 2013, e com um crescimento constante do sector transacionável, observa-se um efeito interessante: os preços do imobiliário estão muito próximos dos de 2009. Desta vez alimentados por uma economia forte: as luzes acesas à noite confirmam-no. 

7 comentários:

Luís Lavoura disse...

A primeira parte deste post parece-me uma bela descrição da bolha imobiliária que ocorreu em Portugal há uns anos.

Luís Lavoura disse...

Parece-me que em Portugal, tal como no Dubai, o Estado também não interveio para salvar o setor imobiliário.
Uma diferença crucial entre o Dubai e Portugal é que no Dubai há um vizinho amigo (o Abu Dhabi) que tem muito petróleo e portanto muito dinheiro para oferecer ao Dubai. Nos EAU não se paga impostos porque os impostos são pagos pelos estrangeiros, isto é, por quem compra o petróleo. Faz toda a diferença.

Ricciardi disse...

Não conheço sector transacionavel relevante no Dubai, a não ser que considere o turismo. Muito gostaria que o Carlos me pudesse esclarecer. Mais a mais não parece aceitavel, nem lógico, afirmar que o Dubai tenha recuperado no espaço de um ou dois anos, devido a um sector (transacionaveis) que demora muitos anos a fazer-se. As fabricas não crescem como os cogumelos.
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Visto de longe, sem acompanhar muito bem a situação, o que me chega é que o Dubai não cometeu o erro de Portugal. Não subiu os impostos. E isso faz TODA a diferença.
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Rb

Carlos Guimarães Pinto disse...

O Dubai é o centro de serviços para toda a África, Médio Oriente e Ásia Ocidental. Muitas empresas dessa egião concentram os seus serviços centrais no dubai, pelos baixos impostos e por ser mais fácil atrair pessoal qualificado.

Luís Lavoura disse...

Ricciardi,
obviamente o turismo é um setor transacionável importante em muitos países, incluindo o Dubai (e Portugal). Mas há mais. O transporte aéreo (a TAP é a principal empresa exportadora portuguesa). Os serviços financeiros (muito relevantes em Chipre, por exemplo). Outros serviços (back office, por exemplo, importante na Índia).
Setor transacionável não são apenas fábricas.

Ricciardi disse...

Certo LV, mas eu fiquei com a impressão de que o Carlos estaria a referir-se a uma nova aposta no sector transacionavel que não aqueles que já vinham de trás.
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Ora, afinal de contas o Dubai continuou a apostar naquilo que já fazia: Comercio, Turismo, Petroleo, Finanças.
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Mas pronto, deve ter sido má interpretação minha do post.
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Assim, conclui-se que nada estava errado no Dubai. Houve uma crise internacional que teve impacto negativo no país e que afastou muita massa daquele país. Mas como o país não se pôs a inventar (como o nosso) e continuou com txas de imposto baixinhas o pessoal da aldeia global regressou naturalmente.
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Rb

Ricciardi disse...

A situação do Chipre deve ser muito semelhante ao Dubai, na devida escala.

No entanto o Chipre vai colapsar porque a UE os vai obrigar a subir impostos e deixar de ter vantagens na captação de dinheiros. Isto depois de os terem obrigado a aceitar um perdão da divida Grega.
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Em suma, se o Dubai estivesse na zona Euro, teriam exigido a este país que eles perdoassem 60% das aplicações que tinham em titulos do tesouro de um qualquer país e depois teriam sujeitado os depositantes (investidores) dos bancos do Dubai a arcarem com as consequencias, sem prescindir de lhes exigir aumento de impostos.
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É caso para dizer, há países com mais sorte do que outros.
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Rb