12 fevereiro 2013

um «cemitério» de consumidores

Neste post publicado no Portugal Contemporâneo, o Carlos Novais trouxe à discussão o ponto central que distingue, a meu ver, o liberalismo clássico do libertarismo anarco-capitalista. Ele surge a propósito das ideias de Hoppe (o sempre eterno Hoppe…) e consiste num comentário feito sobre o seu livro mais famoso – Democracy: The God that Failed -, no qual se expõe o princípio de organização política de uma sociedade inspirada por essas ideias. Diz assim: «Os verdadeiros conservadores, segundo Hoppe, são defensores de uma “ordem natural” com base na propriedade privada, nas normas culturais e morais, a instituição da família e a ideia da aristocracia natural, um grupo de homens que, devido à sua enorme produtividade, a prudência e a virtude privada, voluntariamente são reconhecidos como líderes de suas comunidades, culturais e intelectuais e guardiões da Lei Natural antiga e imutável.»
Estamos, como não custa entender, em pleno domínio da teoria do governo e da teoria das elites, que seriam, estas últimas, detentoras desse pesado, mas inevitável fardo que é governar os outros. A «democracia», o tal «God» que falhou, e que é visto pelos liberais clássicos como um imprescindível sistema de selecção pacífica dos governantes, seria substituída por um sistema de escolha de líderes – os «aristocratas naturais», imensamente «produtivos, prudentes e virtuosos» – através de um processo esotérico de «reconhecimento voluntário», que ninguém sabe no que poderia consistir. A este «escol» de aristocratas anarco-capitalistas caberia a elevada missão de guardar a «Lei Natural antiga e imutável».

O cenário parece um pouco saído da sci-fi alucinogénica dos anos 70, mas tem filiação mais profunda e perigosa do que aquilo que possa parecer a um observador mais desatento. Ela inspira-se na velha República dos Sábios de Platão, que teve, ao longo da História, interpretações várias, entre elas a ditadura jacobina de Robespierre, a vanguarda do proletariado de Lenine, as elites revolucionárias fascistas, as tentativas de supremacia tecnocrática europeísta, etc.. O ponto é sempre o mesmo: seja por necessidade de «defender» a revolução, o povo, a pátria, o progresso, ou a «Lei Natural antiga e imutável», um grupo selecto de cavalheiros presume-se em melhores condições do que todos os demais para o fazer e para nos garantir, assim, a felicidade na terra. Karl Popper descreveu este vício totalitário muitíssimo bem e ele já não é novidade nenhuma. No caso do pensamento de HHH (concedamos a amabilidade de admitir que ele não esgota, nesta matéria, o pensamento ancap) seria interessante perceber como se processaria esse tal «reconhecimento voluntário» dos «líderes» de uma comunidade, sem que isso representasse uma intolerável violência sobre os indivíduos que não estivessem para aturar tamanho sacrifício e generosidade destes «aristocratas».

É evidente, pelo menos para mim, que defender que a «História é um cemitério da luta de classes» ou de «elites», sejam estas as elites de Pareto ou de Hoppe, não passa de um discurso político totalitário, que nada, mas mesmo nada, tem de liberal. O liberalismo, pelo menos como eu o conheço, abstém-se de dispor sobre o que deve ser a natureza do governo. Não anda atrás do «governo ideal», nem dos «sábios» que tomem conta dele e dos restantes mortais. Se lermos atentamente os liberais clássicos, talvez com uma breve (e completamente despropositada, diga-se em abono da verdade) passagem de Hayek sobre uma hipotética teoria «liberal» da organização política (no Capítulo XVII, Parte III, do Law, Legislation and Liberty), os liberais não costumam dissertar sobre aquilo que o governo deve ser, mas sobre o que o governo não poderá nunca ser e fazer para se salvaguardar a liberdade individual. Por isso, os liberais criaram e desenvolveram as Constituições políticas para diminuir o poder do estado e do governo, e não Constituições políticas para criarem governos e estados. Estes já existiam, e passaram a ser bem mais razoáveis depois desta «invenção» liberal.

Convém não confundir nada disto com o célebre «igualitarismo», que os liberais defendem na esfera pública – já que ninguém deve ser descriminado pela lei ou pela soberania, e todos os cidadãos devem ter os mesmos direitos políticos perante o estado (princípio muito, muito velho, do tempo da República Romana, cuja dissecação deixaremos para outro dia…) -, condenam na esfera privada – onde o mercado selecciona quem serve melhor os consumidores –, e que pretendem impedir na esfera privada como imposição da pública, isto é, na idealização de uma sociedade igualitária em bens e rendimentos, imposta por um programa político, a partir do governo e do estado (o Estado Social, se quiserem). Os liberais entendem – e bem – que a melhor maneira de permitir que as pessoas melhorem as suas condições de desconforto existencial é o livre-mercado, e que o estado – por várias razões que não cabe, aqui e agora, explorar – promove e aprofunda a desigualdade social com as suas políticas de redistribuição.

No fim de contas, aquilo que os liberais defendem é que a «História» possa ser um «cemitério» de «consumidores», evocando aqui o velho dogma de Mises, para quem o liberalismo é a expressão da «soberania dos consumidores». Mas nunca um «cemitério de elites».

4 comentários:

zazie disse...

Sim, existe por ali uma utopia desse género, mas, no caso deles, as elites tinham de ser eleitas por bairro, logo, se fosse por cá, cheira-me mais a bandos de zona Jota, mais ciganos acampados em terras que passaram a ser deles e coisas assim.

eehehe

zazie disse...

Ficava como já começa a ficar por toda a Europa, a utopia do RSI, livres e independentes, apenas sujeito aos Direitos Humanos da ONU e UE.

muja disse...

E depois, os conservadores - como eu os entendo, porque Vs. andam sempre a mudar o significado das palavras para jogarem bem com a conclusão a que pretendem chegar (deve haver um nome para essa falácia) - não são totalitários. Assim de repente, todos os regimes totalitários que conheço são progressistas.

E totalitários aqui, para não haver dúvidas, é da perspectiva do Estado: o Estado é total, no sentido de que todos participam do e são Estado e, consequentemente, o Estado tudo controla, regula, e dirige.

São absolutistas, sim, no sentido em que a autoridade do Rei é absoluta, uma vez que o Rei é a Nação em pessoa. Mas não significa que o Rei a exerça de forma totalitária. Dependendo das necessidades de cada tempo, o Rei centraliza ou descentraliza, delega ou assume, pois é esse o seu papel.

E para também não haver dúvidas, conservador é, para mim e penso que tradicionalmente, alguém que pense como Maurras, para dar um exemplo relativamente recente. Não é, certamente, uma Ayn Rand.

E é falso que os verdadeiros conservadores,(...), são defensores de uma “ordem natural” com base na propriedade privada. A ordem não se baseia na propriedade privada, até porque no Velho Regime, no geral, os únicos que tinham propriedade privada eram os nobres. O povo não a tinha, e o clero, individualmente, também não (ou não devia). E nem era assim tão privada, porque eram os trabalhadores que a trabalhavam. Era propriedade no sentido em que estava ao cuidado dos nobres defendê-la e conservá-la de invasores estrangeiros em tempo de guerra, e desenvolvê-la e administrá-la em tempo de paz, e cada um tinha sob a responsabilidade uma maior ou menor parcela que, aliás, variava conforme os tempos e os reis - conforme a necessidade comum, como entendida pelo monarca. A propriedade privada, como hoje a entendemos, teve origem simultânea com a burguesia. Aliás, de certa forma, o burguês era aquele que tinha propriedade privada.

E a aristocracia não é de pessoas. É de famílias. São as famílias o repositório distribuído da tradição, gravitando em redor da família real, e as pessoas eram formadas, educadas e instruídas sobretudo no seio da família. Fazia sentido entregar o estatuto de elite a estas células básicas da sociedade, que deveriam tomar a responsabilidade de conservar a sua parcela.

zazie disse...

Há um problema: os liberais têm de ser revolucionários.

Uns são mais revolucionários que outros.

Os que são menos, acabam por adaptar parte das ideias à social democracia e por aí, nem há crise.

Porque uma sociedade pura- liberal, não existe e nem era bom que existisse.